BRASÍLIA - Uma proposta em tramitação na Câmara dos Deputados gerou reação de entidades de defesa dos direitos das pessoas com deficiência e colocou em lados opostos parlamentares que militam na causa. O projeto que cria o Código Brasileiro de Inclusão (CBI) foi alvo de críticas por abrir brecha para revogação da Lei Brasileira de Inclusão, aprovada há dez anos e considerada um marco na área.

O projeto apresentado pela Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, sob presidência do deputado Duarte Jr. (PSB-MA), pretende reunir em um código todo o arcabouço legislativo relacionado ao tema. Segundo Duarte Jr., a medida é importante para facilitar o o das pessoas com deficiência a direitos e fortalecer a legislação na área.
No texto inicial, no entanto, a medida previa a revogação de leis e decretos aprovados anteriormente, o que acendeu o alerta em organizações de defesa dos direitos das pessoas com deficiência e na relatora da LBI e ativista na área, senadora Mara Gabrilli (PSD-SP). “Não é um novo código. É um retrocesso completo”, afirmou a parlamentar em uma nota que resultou em uma troca de farpas com o deputado na última semana.
Em entrevista ao Estadão, Gabrilli defendeu que a proposta seja retirada e afirmou que há outras formas de aprimorar a legislação, como rever trechos que foram vetados da LBI. “Eu posso confiar nele (Duarte Jr), mas tenho que confiar em mais 512 (deputados) de um lado e mais 81 (senadores) do outro", disse a senadora (Leia mais abaixo).

A Rede Brasileira de Inclusão, uma das organizações que atua na área, criou um abaixo-assinado contra o projeto. E afirmou que a proposta coloca em risco os direitos das pessoas com deficiência.
O deputado Duarte Jr. itiu ao Estadão que fará nova redação da proposta e justificou que a versão inicial trazia apenas uma “revogação formal” das leis e decretos, com preservação de seu conteúdo. Segundo ele, era apenas uma questão de rito legislativo no qual as leis ariam a vigorar com um novo número e os antigos seriam revogados.
Duarte Jr. afirmou ainda que o regimento impede que os chamados projetos de consolidação, como o código proposto, tragam alterações no mérito, ou seja, criem ou revoguem direitos. “É a garantia de que meu filho possa viver num país em que a LBI possa ser mais ível, como é com o Código de Defesa do Consumidor. Concomitantemente, apresentei um projeto de lei para obrigar os estabelecimentos comerciais a ter a LBI ali presente”, disse ele que é pai de uma criança com síndrome de Down.

O deputado argumentou ainda que a medida servirá para modernizar os termos considerados capacitistas utilizados em algumas normas, atendendo a uma recomendação da Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O argumento é refutado por Gabrilli, que afirma que as alterações devem ser feitas em um projeto de lei específico e não revogando a LBI.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com a senadora.
Por que a senhora é contra a criação do Código de Inclusão ?
Ele vem com o nome de código, mas não é um código. Ele não tem uma abrangência de código, não tem objetivo de código, não tem procedimento de código. O deputado Duarte diz que vai fazer uma consolidação das leis. Quando ele diz que vai consolidar a legislação, no ato da consolidação ele está revogando marcos legais importantíssimos, como, por exemplo, a Lei Brasileira de Inclusão, que é a lei que tramitou durante 15 anos no Congresso. Esse texto veio para as minhas mãos para ser relatado e eu ainda fui a autora do texto final. E foi um case no Congresso porque foi construído com a sociedade civil. Quando a LBI está fazendo 10 anos, você vai lá de presente e revoga? Não só a LBI. E quando você revoga a LBI, é um sinal muito derrotante para a população, que ajudou a construir e tem essa lei como garantia de direitos.
Que prejuízos isso poderia trazer?
Ele revoga o nosso decreto de ibilidade, que estabelece prazos, por exemplo, para que o transporte coletivo, todo o sistema de transporte brasileiro, seja ível. A gente trabalha há milênios para mostrar para o cidadão que quem precisa de ibilidade é toda a população, porque vai envelhecer, porque carrega carrinho de bebê, porque tem várias idiossincrasias para que a ibilidade faça parte da vida dela e deixe a qualidade de vida melhor. Ele revoga esse decreto e enfia num Código de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Então, a ibilidade a a ser uma coisa de exclusivo uso de quem tem deficiência. Isso abre a porta para ninguém querer fazer ibilidade. (O deputado Duarte Jr) vira e fala: “Confia em mim”. Eu posso confiar nele, mas eu tenho que confiar em mais 512 (deputados) de um lado e mais 81 (senadores) do outro, porque está abrindo a porta para que os hotéis e as construtoras se aproximem não querendo fazer ibilidade de desenho universal. As escolas se aproximem não querendo fazer educação inclusiva. O deputado diz que a consolidação não mexe (nas leis existentes), mas está mexendo. Vai abrir a porta para destruir a lei de cotas. Ele introduz a possibilidade de adiar a implementação de ibilidade na comunicação. Assim como a Língua Brasileira de Sinais, como audiodescrição para cego, como as legendas. Está tirando o cego da TV e do cinema.
É possível construir uma proposta de consenso em cima do texto do Código Brasileiro de Inclusão?
Toda atitude para que as pessoas com deficiências tenham uma vida mais íntegra e melhor é bem-vinda. Mas, nesse caso, acho que a melhor solução é retirar esse projeto e a gente recomeçar com outras questões que são fundamentais. A gente tem que regulamentar a avaliação bio-psicossocial. A gente tem muita coisa a fazer, por exemplo, os artigos que foram vetados da Lei Brasileira de Inclusão.
A Lei Brasileira de Inclusão completa 10 anos, como adequá-la às novas demandas da sociedade?
A gente pode pegar os artigos que foram vetados e tentar reintroduzi-los. A gente pode expandir. Tem muita coisa para aprimorar a legislação. Agora, nada que seja uma revogação. A gente tem que ter a nossa política de cuidados. As pessoas com deficiência precisam de cuidadores, aquelas que têm doenças raras. É isso que a gente tem de fazer. E não ficar perdendo tempo e dinheiro para ficar enxugando gelo numa coisa que não condiz com a verdade nem com nenhuma técnica legislativa. Eu sei o que eu sofri para relatar esse projeto (da LBI). Eu sei o tamanho da pressão. Já teve reação da sociedade, já começou o lobby.
Que vetos poderiam ser revistos?
Hoje, a lei de cotas prevê que toda empresa que tem acima de 100 funcionários, tenha que contratar de 2% a 5% do quadro com pessoas com deficiência. Um dos artigos da LBI era: toda empresa que tiver de 50 a 99 funcionários, e por isso a gente entende praticamente 70% das empresas do Brasil, deveriam contratar uma pessoa com deficiência. É uma transformação gigantesca.
Há espaço para retomar o diálogo com o deputado Duarte Jr. e com outros parlamentares sobre o tema?
Eu não tenho dificuldade em falar com nenhum parlamentar. A hora que o Duarte quiser falar (estarei disponível).
Pretende solicitar uma nova audiência pública?
Se uma pessoa ouve tudo o que ele ouviu na audiência pública, o mínimo que estou esperando agora é a retirada do projeto. A cada jabuti é a pessoa com deficiência que perde direito. Estou falando de gente pobre. Não estou falando nem de mim, nem das pessoas que ainda têm força para lutar pelas outras.