
Psicoterapeuta há quase três décadas, Dulce Amabis conduz grupos de gestantes há 28 anos. Os encontros, muito procurados por mulheres que buscam escuta, vínculo e preparo emocional para a maternidade, nasceram de uma constatação: o maternar mudou — e muito. Hoje, as mulheres chegam à maternidade com pouca rede de apoio e um excesso de informações que, em vez de ajudar, confundem. Nesta conversa com a coluna, Dulce fala sobre os desafios contemporâneos de ser mãe. Reflete sobre culpa, limites, ideal de perfeição e a solidão do puerpério — tema recorrente em seus grupos.
Foi ao observar a solidão enfrentada por mulheres neste período da vida, que Dulce começou a reunir gestantes. Mesmo bem-informadas, muitas se sentem despreparadas para a chegada de um bebê. “Antigamente, as famílias eram grandes, e as meninas aprendiam observando suas mães cuidarem dos irmãos. Hoje, muitas nunca seguraram um recém-nascido antes do próprio filho”, diz. Segundo ela, o isolamento começa logo após o parto. “ado o encantamento inicial, a mãe se vê sozinha, enquanto todos voltam à vida normal. Criei os grupos para que essas mulheres criassem laços e não se sentissem tão sós.”
Dulce chama esse momento de “mães recém-nascidas” — uma fase marcada por renúncias, inseguranças e um sentimento de desamparo. Para mulheres de classes essa sempre foi uma realidade, afirma. Mesmo entre mulheres com privilégios, o impacto emocional das renúncias é forte. “Hoje as mulheres têm muitos desejos, muitas possibilidades. Abrir mão de parte disso para cuidar de um bebê é doloroso, mesmo quando a decisão é consciente. E, em geral, não encontram no parceiro uma divisão real das tarefas. A sobrecarga é grande, principalmente no início.”
A partir da chegada do bebê, é a mãe quem também precisa de cuidado. É nesse período de transformação que muitos dos dilemas emocionais se intensificam. Um dos mais desafiadores é colocar limites. “A criança precisa atravessar sentimentos difíceis — tristeza, raiva, frustração. E os pais precisam tolerar isso. Vão ouvir ‘eu te odeio’. E tudo bem. Isso faz parte do amadurecimento”, diz. Para ela, muitos adultos têm dificuldade em sustentar o conflito. “Existe uma fantasia de que os filhos devem estar felizes o tempo todo. Mas eles vão se frustrar — e precisam viver essas emoções para crescer. Sem isso, não amadurecem. Vejo uma permissividade excessiva, que impede o desenvolvimento emocional das crianças.” A psicoterapeuta, no entanto, defende a importância de mães e pais também cuidarem de si mesmos e do casal. “A rigidez dos cuidados com os bebês e as crianças, seguindo todas as normas, muitas vezes fazem com que as mães se percam de si mesmas”, pontua.
Outro peso que recai sobre as mães é a busca por perfeição. Uma cobrança reforçada pelas redes sociais, que vendem a imagem de uma maternidade plena, leve e sem falhas. “A ideia de que a mãe tem que estar feliz o tempo inteiro e dar conta de tudo é uma fantasia. O bebê não precisa de uma mãe perfeita. Precisa de uma mãe que está bem e não fazendo tudo perfeito. O bebê a falhas. O que ele não aguenta é ser desconsiderado constantemente.”
Essa angústia se soma à sobrecarga de informações, que tem sido fonte frequente de sofrimento nos grupos. Dulce critica a crença — disseminada por especialistas — de que o bebê precisa ser estimulado o tempo todo. “Isso adoece as mães. Os bebês não precisam de estímulo constante. Precisam ser olhados, sentidos, cuidados. Precisam de alguém que converse com eles, que os trate como sujeitos. O excesso de técnicas tira o foco do essencial: o vínculo.”
Se os desafios são muitos para quem tem o à informação e autonomia de escolha, são ainda maiores para mulheres em situação de vulnerabilidade. Dulce aponta o abismo social que atravessa a experiência da maternidade no Brasil. “Para essas mulheres, sempre foi difícil. A diferença é que não há tempo nem espaço para refletir sobre isso. Elas voltam a trabalhar poucos dias depois do parto, a licença maternidade é curta, e faltam creches. Isso não é justo. Toda mulher deveria ter direito a tempo e e para cuidar e se adaptar.”
Na avaliação de Dulce, é urgente desenvolver políticas públicas eficazes. “Faltam tempo, apoio, recursos. A maternidade exige presença, cuidado, escuta, uma licença justa e condições mínimas para exercer a maternidade com dignidade”, conclui.