
Durante os anos 2000, era quase impossível entrar em uma locadora sem dar de cara com um pôster de Corra, Lola, Corra. E não era por acaso: o terceiro longa-metragem do cineasta alemão Tom Tykwer tornou-se um sucesso inesperado, venceu o Prêmio do Público no Festival de Sundance em 1999, arrecadou mais de 22 milhões de dólares ao redor do mundo - cerca de 13 vezes o seu orçamento de produção - e alcançou rapidamente o status de fenômeno cult da geração pós-MTV, ao lado de títulos como Matrix e Clube da Luta. Apesar do impacto na época, Tykwer não tem tanta certeza se a produção teria o mesmo alcance se fosse lançada hoje, em um cenário dominado por plataformas de streaming e excesso de oferta. “A concorrência é brutal,” comentou em entrevista ao Estadão.
O diretor esteve recentemente no Brasil para participar da 1ª edição do Festival de Cinema Europeu Imovision, onde apresentou seu novo trabalho, The Light, filme de abertura da Berlinale 2024, que dividiu a crítica. A produção, com quase três horas de duração, retrata a vida cotidiana de uma família de classe média em um mundo instável - e marca o retorno de Tykwer à ficção após quase uma década afastado (seu último longa-metragem havia sido Negócio das Arábias (2016), estrelado por Tom Hanks). “Eu estava com saudade dos filmes,” ite o diretor. “Ainda me pego sentindo falta de obras que realmente reflitam o mundo em que vivo hoje - filmes nos quais eu possa me ver.”
Em sua visita ao Brasil, Tykwer também refletiu sobre o comportamento do público moderno, especialmente em relação à televisão e ao streaming. Embora ele reconheça a evolução das séries e o aumento da qualidade das produções, com destaque para obras como Euphoria, Irma Vep e O Urso, o diretor expressa uma certa irritação com como as pessoas lidam com a duração dos filmes. “Eu não entendo por que todo mundo fica tão obcecado com o tempo de duração de um filme. Ninguém questiona as séries de TV, mesmo quando elas têm temporadas inteiras de episódios longos, mas se você faz um filme com quase três horas, isso se torna um problema,” desabafa, visivelmente incomodado.
Talvez você não saiba, mas no Brasil, as locadoras de filmes estavam sempre cheias de pôsteres de Corra, Lola, Corra. O filme se tornou um verdadeiro fenômeno, especialmente entre os jovens e na internet. Lembro que surgiram diversos blogs e comunidades no Orkut dedicados ao longa.

Corra, Lola, Corra foi um dos meus maiores sucessos, e sei que teve um impacto especialmente forte na América do Sul e no México. Além disso, foi lançado em um momento coincidente com a estreia de Matrix, o que me aproximou das irmãs Wachowski. Ambos os filmes estrearam nos Estados Unidos na mesma semana, e logo começamos a trocar mensagens do tipo: “Uau, somos como irmãos; precisamos nos encontrar.” Embora sejam filmes muito diferentes, de certa forma, eles estavam conectados. Foram alguns dos primeiros grandes sucessos a alcançar uma popularidade significativa nas locadoras de vídeo e nos serviços de aluguel, algo que era incomum na época.
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Você acha que a geração mais jovem vê ‘Corra, Lola, Corra’ de forma diferente do público original? Existe uma diferença na forma como eles percebem o filme hoje em dia, comparado à maneira como ele foi recebido na época do seu lançamento?
Na verdade, eu assisti Corra, Lola, Corra novamente depois de 20 anos. Não costumava revisitar meus próprios filmes, mas como fizemos uma nova transferência em 4K, precisei assistir. Eu estava preparado para pensar: “Ok, isso é algo com o qual não me identifico mais”. Mas, para minha surpresa, gostei bastante. Vi o filme com certa distância, como se tivesse sido feito por outra pessoa, já que não sou mais a mesma pessoa de antes. Mas, ao mesmo tempo, ainda sou eu. O que percebi é que o filme mantém uma energia e uma ideia universais. Ele transmite a crença de que não precisamos simplesmente aceitar o destino ou seguir regras pré-estabelecidas. Podemos, de fato, tentar mudar as coisas. Para isso, é preciso lutar, reunir toda a nossa energia, mas a mudança é possível. E é isso que torna o filme tão cheio de esperança. Ele é simples, mas com um mensagem otimista, e acho que isso ainda é relevante hoje. Precisamos ser lembrados de que a mudança é possível, especialmente agora, quando a vida está tão difícil. Está difícil em todo lugar. Mesmo em países mais ricos, a vida é desafiadora, e todos estão com medo.
Como você acredita que a indústria do cinema mudou com o surgimento dos serviços de streaming? Filmes como ‘Corra, Lola, Corra’ ou até mesmo ‘Matrix’ teriam o mesmo impacto hoje se fossem lançados diretamente nas plataformas de streaming?
Bem, como sabemos, os filmes sempre estão inseridos no contexto de seu tempo. Ainda vejo que muitos filmes ousados e incríveis estão sendo feitos hoje e conseguem alcançar o público nos cinemas. No entanto, a concorrência nunca foi tão acirrada como é agora, devido às diversas plataformas de streaming, aos programas de televisão e à imensa quantidade de opções disponíveis para os espectadores. Especialmente com a evolução das séries de TV, que, em muitos casos, são extremamente bem produzidas. Claro, apenas cerca de 5% delas realmente se destacam, mas mesmo esse 5% representa uma quantidade significativa. Se você escolher com cuidado, assim como no cinema, pode encontrar um ótimo programa para assistir quase todo mês. Realmente não tenho como apontar, mas não sei se estaria favorável.
Há alguns anos, o presidente do canal FX, John Landgraf, afirmou que estávamos entrando na ‘bolha’ da TV, devido à proliferação massiva de conteúdo televisivo. E sim, eu acredito que estamos vivendo exatamente isso: o que poderia ser chamado de bolha da televisão. Com tantas plataformas de streaming disponíveis, cada uma oferecendo seu próprio conteúdo original, fica difícil não se sentir sobrecarregado. Às vezes, parece que estamos tentando acompanhar tudo ao mesmo tempo, o que pode ser realmente confuso. Não sei se como realizador você também tem essa sensação.
Ao mesmo tempo, a televisão realmente assumiu riscos criativos e se tornou uma plataforma inovadora, especialmente no início dos anos 2000, oferecendo narrativas que se aproximavam do estilo cinematográfico, graças a séries como Família Sopranos e The Wire. Naquela época, parecia que uma nova forma de contar histórias estava sendo criada. Hoje, acredito que cinema e televisão estão mais interconectados do que nunca. As pessoas abraçaram totalmente o streaming, assistindo a conteúdo em grandes telas de TV em casa. E sinto que estamos vivendo uma mudança - talvez em uma escala mais intimista - onde o público está redescobrindo a experiência de ir ao cinema. Pelo menos, essa é a minha impressão. Os números também parecem refletir isso. Portanto, embora o número de cinemas possa diminuir, aqueles que forem bem projetados e bem geridos - como este aqui, por exemplo - tenderão a manter um público fiel e constante.
O que você está assistindo atualmente que realmente considera uma boa série de televisão?
Recentemente, assisti Euphoria e gostei bastante da série. Também me impressionei com minissérie Irma Vep, uma produção sa [adaptação do filme homônimo de Olivier Assayas]. Gosto de explorar várias séries diferentes, especialmente as mais inventivas, embora, claro, nem todas sejam boas - há também muita coisa ruim. Mas, se você selecionar com cuidado, sempre encontra algo que vale a pena. Acho que a HBO ainda está liderando em termos de qualidade. No entanto, não sou tão fã de séries como The Last of Us. Também não acompanhei Game of Thrones inteira, achei chata.
Também assisti O Estúdio -você já viu? Está no Apple TV. E, claro, O Urso. O que me impressiona em O Urso é que ela não tenta tornar os personagens simpáticos, o que é ousado. Ela não busca conquistar a simpatia do público, e isso é algo que achei fascinante. No começo, me senti desconfortável, mas depois percebi: eu conheço pessoas assim. Elas são difíceis, lutam muito, e, por isso, nem sempre conseguem ser agradáveis. A série respeita essa complexidade e não oferece uma resolução típica, onde todos se abraçam no final. Fica sem resolução ou apenas parcialmente resolvida. É intensa. O protagonista não é um cara legal, e isso é impressionante. Também gostei de Succession porque ninguém ali é legal. É brilhante - excelentemente executada com atuações fantásticas - mas sempre tenho a sensação de que estou assistindo a pessoas feias se torturando. Não é algo que eu faria, nem saberia como fazer.
Você trabalhou na série alemã ‘Babylon Berlin’. Qual é, para você, a diferença entre trabalhar em uma série de televisão e em um filme único?
Na verdade, não há muita diferença, pois o trabalho é essencialmente o mesmo. A preparação também é muito similar. Hoje em dia, as produções de TV precisam ter a mesma qualidade visual dos filmes. Não é mais uma questão de pensar “Ah, é só TV, vamos simplificar.” As pessoas, e eu também, esperamos que as séries de TV alcancem o mesmo nível de qualidade que os filmes.

Sim, muitas pessoas costumam dizer que uma série de televisão hoje em dia é basicamente como um filme de oito horas.
Eu também sinto o mesmo. Quando começamos a trabalhar em Babylon Berlin, dissemos: “Vamos fazer um filme de 50 horas.” Mas aí está a diferença. Quando você cria um filme, o caminho é claro: você começa no desenvolvimento, a pela escrita, filmagens, edição e finalização. Depois, você encontra seu público. Normalmente, são dois ou três anos de trabalho intenso até o filme estar pronto. É como surfar uma grande onda, você chega ao topo, planta sua bandeira e diz: “Consegui.” Para alguém como eu, geralmente estou pronto para seguir em frente e tentar algo completamente novo. Mas com uma série de televisão, especialmente uma contínua, é diferente. Na manhã seguinte, o telefone toca e dizem: “Agora, suba não apenas o Monte Everest, mas também o K2.” E você pensa: “Espera, acabei de terminar de escalar uma montanha. Não poderia tentar algo mais? Como mergulhar no fundo do mar, atravessar um deserto ou até voar até a lua?” Mas a televisão pode ser implacável. Você entra nesse ciclo, e essa continuidade pode ser criativamente exaustiva. Tive que encontrar uma maneira de lidar com isso, porque foi um grande desafio. Foi também por isso que voltei a fazer um filme-sentia tanta falta disso.
E, além disso, o que te motiva? O que te levou a dirigir ‘The Light’?
Às vezes, ainda sinto falta de filmes que realmente reflitam o mundo em que vivo hoje - filmes nos quais eu me reconheça. Eu queria fazer um filme contemporâneo, que falasse sobre nós. E, por “nós”, me refiro a essa ampla e, de certa forma, elusiva classe média que, embora varie dependendo de onde você está no mundo, compartilha várias semelhanças. Somos as pessoas que você vê nos filmes de Pedro Almodóvar, nas obras de Walter Salles ou até de Woody Allen - pessoas culturalmente engajadas, politicamente interessadas, sentadas em cafés e restaurantes, discutindo sobre a vida, como em muitos filmes ses. Sinto falta dessas histórias, que me fazem pensar: “Sim, essa é a minha vida”, com todas as suas contradições. Histórias que mostram nossas lutas, mas também as abordam com humor, perspectiva e empatia. Filmes que nos ajudam a falar sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos, ao invés de apenas oferecer uma fuga.
Eu realmente me sinto atraído pela subjetividade, pela experiência interior dos personagens, por como eles se sentem e processam o mundo ao seu redor. Foi por isso que, para este novo filme, decidi focar nos pais e seus filhos adultos. Todos são protagonistas da história. Não há uma prioridade entre eles - nem mesmo a governanta, que também faz parte da família. O filme aborda a família de uma maneira ampla, tratando cada perspectiva com a mesma profundidade emocional e subjetividade. Quero que o público sinta, de fato, como é ser adolescente - indo a baladas, sendo politicamente ativo e lutando contra o que vê como a absurdidade dos pais. Mas também quero que sintam o que é ser um pai - fazendo o seu melhor, trabalhando duro para criar uma vida significativa e, muitas vezes, se sentindo sobrecarregado por uma sociedade que parece sem sentido. Isso faz sentido? Não estou dizendo que alguém seja estúpido - de forma alguma. Trata-se mais de como nos sentimos em diferentes fases da vida, especialmente quando somos jovens.
Sabendo do seu interesse em retratar conflitos geracionais e os intensos dilemas existenciais da idade, você se inspirou em suas próprias vivências ou na sua adolescência para dirigir ‘The Light’?
Sim, mas também percebi que, de muitas maneiras, nós - pais e filhos - estamos mais próximos e interconectados do que as gerações anteriores. Nunca nos assemelhamos tanto quanto agora, pelo menos essa é a minha impressão. Isso é verdade em todos os lugares por onde o, até aqui no Brasil. O que estou dizendo é que, hoje em dia, os pais - especialmente os de 50 e poucos anos - foram influenciados por uma mentalidade mais moderna e progressista. Existem mais pais assim agora, embora nem todos, e isso impactou diretamente a geração mais jovem. Hoje, sou parte da geração dos pais e sinto que entendo profundamente os medos, as raivas e os desejos dos jovens de 18 anos. Eu realmente os compreendo, e compartilho muitos dos mesmos sentimentos. Eles vão para baladas, e eu também ainda vou para baladas. [risos]
Quase todas as críticas de ‘The Light’ publicadas durante o Festival de Berlim mencionaram a duração do filme, que é de duas horas e 42 minutos... [Tykwer me interrompe antes que eu possa terminar a pergunta].
Por que todo mundo fica falando sobre isso? [visivelmente irritado] Você pergunta ao Christopher Nolan por que os filmes dele são tão longos? Não, né? Isso realmente me incomoda. Tem surgido muita conversa ultimamente sobre filmes estarem ficando longos demais, mas as pessoas assistem a séries de TV por horas a fio e ninguém questiona. Não consigo entender. Para mim, a televisão mudou completamente a nossa percepção de contar histórias. Estamos acostumados com narrativas mais longas, que se desdobram ao longo do tempo. Quando vejo um filme agora, fico até grato por o cinema também estar expandindo sua linguagem. Agora podemos fazer desvios, explorar mais profundamente personagens secundários ou focar em momentos estéticos-coisas que as séries de TV fazem frequentemente porque têm tempo para isso. E agora, parece que o cinema também pode fazer o mesmo. E vamos ser honestos: todo filme da Marvel hoje em dia tem três horas. Vingadores durava o quê - três horas e dez minutos? E todo mundo ainda vai ver. Oppenheimer também teve três horas, e ninguém se importou. Foram boas três horas. Mas, se você faz um filme europeu, por alguma razão, precisa justificar isso duas vezes mais. E quando pergunto às pessoas depois de assistirem ao meu filme: “Você percebeu que o filme era longo?”, até agora ninguém mencionou que percebeu a duração.
Você assistiu a ‘O Brutalista’? Eu realmente não achei que fosse longo. Mas algumas pessoas comentaram: ‘Graças a Deus teve intervalo - não consegui ficar sentado o tempo todo.’ Você não acha que isso não é só um problema da televisão, mas também do streaming?
Agora, as pessoas têm a opção de pausar, sair, fazer outra coisa e depois voltar. É curioso como as séries de hoje em dia tendem a ter episódios de cerca de 30 minutos, enquanto antes eram de 45 minutos ou até uma hora. Isso acontece porque a capacidade de atenção das pessoas diminuiu. Acho que vamos ter que aceitar isso e lidar com essa mudança. Cada geração enfrenta alguma transformação ou até uma “morte” em sua cultura. [risos] Eu mesmo luto com meu filho sobre isso, porque ele está sempre no Instagram, assistindo YouTube ou TikToks. Eu digo a ele: “Sua capacidade de atenção vai diminuir.” E ele responde: “E daí?” Eu respondo: “Bem, aí você não vai conseguir assistir a um filme do Jacques Rivette.” Ele apenas diz: “Ok, e daí?” Pergunto: “O que você vai assistir?” E ele me mostra coisas boas, mas curtas. Então, eles vão dar um jeito de se adaptar, e nós também vamos encontrar um novo meio-termo para onde a arte pode ir. Estou realmente curioso para ver como tudo isso vai se desenrolar.