Uma das agens mais impressionantes do livro Weiter leben. Eine Jugend (traduzido ao português sob o título Paisagem da Memória) de Ruth Klüger, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, diz respeito à chegada dela a Auschwitz, juntamente com sua mãe e com centenas de outros judeus deportados do gueto de Theresienstadt a bordo de um vagão de carga hermeticamente fechado: uma das outras ageiras do trem, judia vienense tanto quanto a autora, e ex-funcionária do sistema escolar austríaco, encontra-se diante dos crematórios, observa a fumaça que se ergue das chaminés e afirma, com segurança inabalável e em seu tom professoral, que o óbvio não era possível, uma vez que se estava no século 20 e na Europa Central, isto é, no centro do mundo civilizado.
Esta agem de um livro absolutamente notável em todos os sentidos representa um paroxismo na história do amor (não correspondido na maior parte das vezes) dos judeus pela Europa, dos judeus ocidentais, ocidentalizados ou em vias de ocidentalização, que acreditaram tão cegamente nas promessas róseas do século 19 europeu a ponto de virarem as costas não apenas para suas origens, para seu legado cultural e espiritual, mas até mesmo para o que já podia ser percebido pelos sentidos. A visão, o cheiro, os ruídos do grande aparelho exterminador concebido por Hitler e seus seguidores em pleno funcionamento não foi suficiente para abalar a cega confiança desta mulher, de quem Ruth Klüger diz: “Eu a achei ridícula, e não porque ela se recusava a acreditar no genocídio (...). Ridículos eram os motivos de sua descrença, essa história de cultura e do coração da Europa.”

Auschwitz foi o ponto final de um sonho judaico cujas origens se encontram na chamada Haskalá, ou iluminismo judaico, na agem do século 18 para o século 19. Trata-se de uma influente corrente de pensamento que, alicerçada na filosofia humanista, propunha a plena integração dos judeus na lógica dos recém concebidos estados nacionais europeus, repúblicas ou monarquias constitucionais baseadas em códigos civis segundo os quais o conceito de cidadania ficava dissociado de origens étnicas, crenças religiosas – enfim, de tudo o que serviu, por séculos a fio, para excluir os judeus do pleno gozo de seus direitos como seres humanos na Europa.
Foram 150 anos de um otimismo que teve, é claro, seus altos e baixos ao longo deste tempo; de uma esperança que, em muitos casos, tornou-se uma espécie de sucedâneo da própria esperança messiânica judaica, esta paciente espera que, durante todos os séculos de um longuíssimo exílio, desempenhou (e em muitos casos ainda desempenha) um lugar fulcral dentro do sistema de crenças religiosas do judaísmo. Tanto assim que o pressuposto fundamental da suposta perfeita integração dos judeus nos estados nacionais do século 19 europeu era a supressão do próprio caráter nacional do judaísmo: os judeus deveriam abdicar de seu sonho nacional, de seu sonho de criação (ou renascimento) de um Estado próprio, vinculado também à ideia messiânica, para assim se tornarem inteiramente ses, alemães, austríacos, húngaros ou seja lá o que fosse – todas essas promessas cujo desmentido mais eloquente foi Auschwitz.
As frágeis certezas de gente como a professora mencionada por Ruth Klüger submergiram sob a torrente de dúvidas que, nos últimos 80 anos, dizem respeito à própria condição judaica. Trata-se de uma condição nacional? Religiosa? Étnica?
Mais do que encontrar algum tipo de resposta categórica para essas questões, grandes escritores sobreviventes do genocídio que, como Ruth Klüger, trataram, em seus livros, de sua experiência no universo concentracional, se empenharam em descrever a própria perplexidade e em enfatizar a irremediável inadequação de todos os conceitos por meio dos quais se relacionavam com a realidade e com a vida, os conceitos que fundamentam a chamada civilização, para dar conta do que viram com os próprios olhos, do que sentiram na própria pele.
Numa época em que praticamente já não há mais, entre os vivos, homens e mulheres que aram por estes lugares, gente que pode narrar o que viu e o que viveu, que pode tentar descrever o indescritível e dizer o indizível, o genocídio tornou-se um tema da indústria cultural: são incontáveis as obras de ficção e, sobretudo, os filmes que, nas últimas décadas, vêm abordando este tema. E os usos políticos que se faz do genocídio, e sobretudo do termo genocídio, em diferentes tipos de discursos multiplicam-se, também, inclusive, recentemente, no contexto da guerra que, trágica como são todas as guerras opõe, no Oriente Médio, Israel e correntes fundamentalistas islâmicas que negam o direito internacionalmente reconhecido desde 1948 que os judeus têm a um estado próprio nas terras onde viveram seus ancestrais.

Para além destes usos, porém, e este é talvez o tema central do magistral livro de Ruth Klüger, Auschwitz, e a história de Auschwitz, têm algo a nos dizer a respeito da sociedade que criou os campos de extermínio – e a sociedade que os criou tem analogias bastante incômodas com as sociedades em que vivemos.
A narrativa de Paisagem da Memória começa com um encontro entre a autora e dois jovens alemães que, por se recusarem a participar do serviço militar, são incumbidos pelo Estado alemão de trabalhar na pintura das cercas que hoje separam o campo de concentração e extermínio de Auschwitz, transformado em memorial e polo de atração de uma estranha forma de turismo, de seu entorno.
Assim como Hannah Arendt em seu célebre Eichmann em Jerusalém: Sobre a Banalidade do Mal, Ruth Klüger reflete menos acerca da excepcionalidade de Auschwitz do que a respeito das semelhanças que existem entre o aparato burocrático que tornou Auschwitz possível e outros aparatos burocráticos que governavam e continuam a governar as sociedades modernas, nos quais o indivíduo abre mão do próprio discernimento, da própria ética e do próprio juízo para se submeter a um sistema de regras alheio, que o pune e o recompensa na medida em que as regras são desobedecidas ou cumpridas, e que se torna um substituto frequentemente cômodo para a necessidade de refletir antes de agir. Nestes grandes aparatos burocráticos a responsabilidade sobre os atos supostamente deixa de ser de quem os pratica e é transferida àquelas nebulosas instâncias superiores das quais provêm as ordens. E, como se sabe, ordens são ordens.
Muito antes de Auschwitz, numa literatura que é em tudo profética no que diz respeito ao que haveria de se ar no século 20 europeu, Franz Kafka anteviu e descreveu minuciosamente o horror silencioso que é perpetrado pelas grandes burocracias, onde os atores agem à sombra de um anonimato e cumprem, simplesmente, o que deles se espera. Sua obra é, em tudo, a predecessora da literatura de testemunho que trata dos campos de concentração, onde a dissociação entre ética e ação, entre execução de ordens e a sensibilidade humana, revelou seus aspectos mais sombrios.
Mais do que repetir o bordão “Auschwitz nunca mais”, o que fazem alguns dos mais lúcidos escritores que testemunharam sobre o genocídio, autores como o Prêmio Nobel Imre Kertész; como Primo Levi; como Elie Wiesel, além de Ruth Klüger e tantos outros, é perguntar-se o que existe em comum entre tudo aquilo que se ou lá e o que vemos à nossa volta todos os dias, mas nos recusamos a enxergar; entre as condições que tornaram Auschwitz possível e as condições das sociedades em que vivemos.
A violência que se perpetra contra as consciências, a blasfêmia, atinge, indiscriminadamente, vítimas tanto quanto algozes. Talvez seja a desumanização; a reificação do ser humano o crime do qual Auschwitz tenha se tornado o mais perfeito emblema.