Era abril de 1945. O garoto Umi, de então 15 anos, se escondia sob uma tábua de madeira em um dos prédios há pouco abandonados no campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha. Os americanos estavam chegando e os nazistas evacuavam o local às pressas, transferindo ou simplesmente fuzilando prisioneiros.
História de sobrevivente do Holocausto que veio morar no Brasil é contada pela nora em livro
Umi já havia escapado da morte algumas vezes. Era o terceiro campo de trabalho pelo qual ava ao lado do irmão mais velho, Chaim, que encontrou o esconderijo para o caçula e foi em busca de alimento. Os dois só se encontrariam de novo muitos anos depois. Ali, o menino esperou até a dor da fome ser inável.
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Reuniu todas as forças que tinha e levantou. Encontrou uma forma de andar apoiado em um carrinho. Não sabia quem ou que encontraria lá fora, mas logo sua figura chamou a atenção de soldados americanos que já ocupavam o local. Foi resgatado, implorava por comida. Foram meses até que se recuperasse - fisicamente, pois a dor interna é outra história.
Hoje, quem cruza com Abram Fligelman certamente não imagina que o senhor de 95 anos, morador da zona oeste de São Paulo, ou por tanta coisa. É ele o menino Umi, que anos após a Segunda Guerra veio morar no Brasil, não antes de enfrentar um outro conflito, a Primeira Guerra Árabe-Israelense, nos anos em que tentou se estabelecer no recém-formado Estado de Israel.

Abram chegou ao Brasil em 1955. Aqui, casou-se com a mulher, Terezinha, seu grande amor, investiu na indústria metalúrgica, viu a família crescer. Foram anos até que ele falasse com detalhes sobre o que viveu durante o Holocausto, mas agora sua história está sendo contada no livro Cicatrizes e Esperanças: A Saga de um Garoto que Resistiu à Fúria Nazista, publicado pela editora Folhas de Relva.
A autora do livro é Ercilia Fligelman, a nora de Abram, de 63 anos. Apaixonada por História desde criança, ela exerceu a profissão de cirurgiã-dentista por anos antes de se dedicar à escrita para contar a história do sogro. Em uma entrevista ao Estadão no apartamento de Ercilia e do marido, Meir, Abram e a nora sentam lado a lado.
“Em 1996, meu sogro deu um depoimento para a Fundação USC Shoah [instituição criada pelo cineasta Steven Spielberg para documentar e preservar testemunhos de sobreviventes do Holocausto]. Isso para ele foi uma catarse. Ele nunca tinha falado nada, ele escondia. Ele sentia culpa, porque os que sobreviveram ainda carregam a culpa de ter sobrevivido. Porque que o outro foi e eu estou aqui?“, explica Ercilia.
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A partir deste momento, Abram começou a alimentar o sonho de que sua história fosse contada - para as novas gerações, para os filhos, para os netos. A nora acreditou que poderia transformar essa vontade em uma realidade: “Juntei minha paixão por história e filosofia com a história dele, que é inspiradora. Uma pessoa que chegou no limite dos limites, transformado em um subumano. Era isso que eles queriam. E, de repente, a pessoa se reergueu, se reconstruiu e está aqui - lúcido, sorridente, sempre feliz, de bem com a vida.”

Abram realmente está bem para os 95 anos que carrega: caminha com a ajuda de uma bengala, precisa de auxílio para se levantar do sofá, mas até ao banheiro vai sozinho. Porém não é fácil para ele falar sobre as dores do Holocausto. Prefere que Ercilia conduza a conversa, mas não deixa de explicar porque, para ele, era tão importante que sua história fosse contada.
“A importância é que ninguém sabe exatamente o que aconteceu e como aconteceu. As gerações novas, ninguém fala [sobre isso]. Mas alguém tem que relembrar esta desgraça que o mundo assistiu e não ligou para brecar”, diz.
A trajetória de Abram Fligelman
Abram nasceu em 1929, na cidade de Opatów, na Polônia. Sua infância, apesar de feliz como o caçula de dois irmãos e uma irmã, já foi marcada pelo antissemitismo que assolou a Europa na década de 1930. A cidade era dividida, mas ele estudava na escola pública e era frequentemente hostilizado pelos colegas não judeus.
Em 1939, sua cidade foi ocupada pelos nazistas. O cotidiano já duro se tornou cada vez pior, com a segregação da comunidade judaica em guetos superlotados, com o à alimentação e sem qualquer qualidade de vida. Abram, que praticamente só era chamado pelo apelido de Umi, era protegido pelos pais da realidade.
Isso mudou em 1942, antes mesmo dele completar 13 anos, quando o irmão Chaim foi “convocado” para um dos campos de trabalho. Na época, a família não sabia o que aquilo significava e achava que as chances de sobrevivência eram maiores do que no gueto.

A mãe de Abram pediu que o menino fosse junto do irmão e o colocou em um caminhão em direção a Sandomierz, cidade vizinha onde estava montado em campo de treinamento nazista. Lá, Abram foi mantido prisioneiro, exercendo trabalho forçado.
Para Ercilia, a separação da mãe é um dos momentos mais marcantes do livro e um dos maiores traumas da vida do sogro - é a memória da qual ele mais se lembra, aparecendo em sonhos com frequência. “Existe ato de amor maior do que esse? Você se separar do seu filho para ele poder sobreviver de algum jeito”, reflete ela.
Meses depois da separação, Fayga, mãe de Abram, assim como o pai, Meir, e a irmã, Chava, foram assassinados no campo de extermínio de Treblinka após serem levados no que ficou conhecido como “trem da morte”. Outro capítulo que Ercilia destaca como um dos mais difíceis de escrever.
Abram se revolta lembrando: “Nós, com muito choro, com muita dor, temos que aguentar e ver que seis milhões de nossos judeus foram mortos. Pai, mãe, filho, neto, crianças, tudo em gás, em Treblinka. Meus pais foram assassinados lá, neste local. E, lamentável, o mundo se silenciou. Na época, [o mundo] não ligou nada para brecar estes assassinos.”

Abram foi transferido para um campo de trabalho forçado em Kielce, onde era vidraceiro. Depois foi enviado a Radom, onde ava o dia cavando terra para preparar trincheiras para os nazistas. Presenciou mais fuzilamentos e mortes do que poderia lembrar. “Durante a guerra, o único pensamento deles era em sobreviver mais um dia”, diz Ercilia.
As memórias de Buchenwald, o último campo por onde Abram ou, são as piores: “Lá, a gente sofreu, eles assustaram a gente. Mas, graças a Deus, sobrevivi. Os americanos liberaram a gente. Eu só me lembro das coisas ruins que ei por ali”. Ercilia responde: “Mas a vingança é o senhor estar vivo, aqui, contando essa história.”
“A verdade é que ele perdeu tudo: família, pai, mãe, perdeu a dignidade. [Depois da guerra], chegou no futuro Estado de Israel, pegou em armas, se reconstruiu e começou uma nova vida. Depois, veio para o Brasil, abandonou tudo de novo e começou novamente. Olha que garra, né?”, reflete a nora.
Ercilia refez os os do sogro
Para escrever Cicatrizes e Esperanças, a autora ou três anos, parte durante a pandemia de covid-19, pesquisando materiais históricos que ajudassem a contar a história do sogro. Ela sabia que, para ter material para um romance de não ficção, precisaria ir além do que Abram se lembrava.
“Tudo é baseado em fatos verídicos. A única coisa que não é exatamente como aconteceu são os diálogos, é a única coisa que não tinha como ter exatidão”, explica. Ela esteve em contato com o Museu da Imigração, que ofereceu documentos da chegada de Abram ao Brasil, com instituições da Polônia e da Alemanha, além de ter obtido depoimentos e realizado conversas diretas com outros sobreviventes.
Mesmo assim, ela sentia que precisava ver com os próprios olhos. “É inimaginável o que eles aram. Foi difícil de escrever porque é inenarrável. É inimaginável onde a barbaridade pode chegar, então eu não conseguia alcançar a fala do meu sogro”, explica.
Por conta disso, Ercilia e o marido, casados há 38 anos, decidiram visitar a Polônia e a Alemanha na companhia de uma guia polonesa, refazendo todo o trajeto de Abram: “Fizemos um trabalho de detetive mesmo, descobrindo os lugares. Consegui enxergar que a praça em que ele não chegava nos braços dos pais dele tem [cerca de] 20 os, mas imagina durante um bombardeio, uma criança no meio de um monte de morte. Para ele, era quilométrico. Eu tive que enxergar com meus olhos.”
Palestra no Unibes Cultural
Neste domingo, 25, a partir das 16h, Ercilia e Abram participarão de uma conversa na Unibes Cultural, em São Paulo, mediada pela professora Ilana Rabinovici Iglicky, coordenadora educacional do Memorial do Holocausto e da Imigração Judaica de São Paulo.
- 25 de maio
- 16h00 às 18h00
- R. Oscar Freire, 2500 - Sumaré
- Gratuito (sujeito a lotação, reserve aqui)
Cicatrizes e Esperanças
- A saga de um garoto que resistiu à fúria nazista.
- Autora: Ercilia Fligelman
- Editora: Folhas de Relva Edições (180 págs.; R$ 72,90)