
Apresentado e premiado em vários festivais do ano ado (Veneza, Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, Mostra de São Paulo, etc), Manas, de Mariana Brennand, provocou emoção e controvérsia por seu tema e, em especial, pela cena de desfecho. Entra agora em cartaz nos cinemas.
O tema é a violência sexual contra crianças. Baseia-se em dez anos de pesquisas na Ilha de Marajó, na Amazônia. Tem valor e peso de verdade.
Já a tal cena final foi chamada de catártica ou vingativa, segundo determinado ponto de vista, ou defendida como violência válida ou justa, segundo a opinião oposta. Quem teria razão? Vejamos: por uma questão de spoiler, não se pode descrever ou situar a dita cena; deixemos portanto em suspenso essa questão. O espectador vai ver o filme e tirar suas próprias conclusões.
Deve-se dizer que Manas é obra de excelente qualidade técnica, o que foi reconhecido internacionalmente ao ser premiado como melhor filme em uma das mostras mais prestigiosas que compõem o Festival de Veneza - a Giornate degli Autori, vulgo Jornadas dos Autores. A seção é concebida para prestigiar obras ousadas, tanto do ponto de vista temático como de linguagem cinematográfica.
O filme põe em cena um núcleo familiar composto por mãe, pai e filhas. Uma delas, a mais velha, já saiu de casa, por motivos ignorados. Outra, Marcielle (Jamille Correa), de 13 anos, se espelha na irmã que foi morar em outra parte. Há outra garota, ainda mais jovem. Todo um clima de tensão vai sendo montado, e de forma progressiva, em torno dessa família e da comunidade da qual faz parte. A mãe parece não querer enxergar o que se a em sua casa. O pai, Marcílio (Rômulo Braga) é um provedor carinhoso, talvez em excesso. Dira Paes interpreta uma policial que tenta ajudar as crianças em situação de insegurança. Mas sente-se manietada por leis permissivas, que privilegiam o pátrio poder.
Tudo parece convergir para a impotência dos personagens diante de um destino inexorável. Até que uma delas resolve fazer um corte, como se refundasse e redefinisse a relação com agressores e com o mundo em geral. Desse ato surge a polêmica.
A questão retorna: um ato de violência ou de vingança pode ser refundador? Talvez. Lembra outro filme, Bacurau, de Kléber Mendonça, em que uma cena foi repetidamente recebida com aplausos pelo público da época. Em Bacurau, um grupo de gringos desloca-se para uma comunidade no sertão e a transforma em campo de caça. Os moradores se defendem. Lutam pela vida. E o fazem com violência, contra a violência que sobre eles se abate. Sangue contra sangue.
A violência exposta em Manas, com a exploração sexual de uma menina de 13 anos, seria menor ou menos grave? No plano dos fatos, não é. No plano ficcional é diferente? Talvez seja, pois a ficção conta com a reação planejada da plateia. O que desejamos? Que o público saia reconfortado pela catarse, pelo alívio das tensões? Ou que saia intrigado, revoltado e consciente de que viu na tela uma iniquidade que acontece na realidade e deve ser combatida a todo custo?
O tema da vingança merece uma digressão. Remonta, talvez, à origem dos tempos. A literatura grega está recheada de herois que se vingam. Dando um salto no tempo, Hamlet é criticado por adiar demais a vingança pelo assassinato do pai. Um dos grandes folhetins de todos os tempos, O Conde de Montecristo (mais de 20 versões para o cinema), é, do princípio ao fim, uma história de vingança. Antar, musicado por Rimsky-Korsakoff, é confrontado com os três grandes prazeres da humanidade - o poder, a vingança e o amor. No final, não é a vingança que o destroi, mas o amor.
Antonio Candido escreveu um ensaio chamado Da Vingança, justamente sobre a obra folhetinesca de Alexandre Dumas, pai. Resumindo: Edmond Dantès é encarcerado injustamente em uma masmorra por 14 anos. Quando foge, arquiteta uma vingança contra os que o enviaram ao cárcere e destruíram sua vida. Candido destaca o caráter individual do ato vingativo: "O Conde de Montecristo é um retrato completo da vingança pessoal; a vingança pessoal é a quintessência do individualismo; o individualismo foi e de certo modo continua querendo ser, eixo da conduta burguesa."
O que muda o ato de vingança? Nada, do ponto de vista estrutural. Mas esta é uma reflexão feita nos tempos em que se acreditava em soluções coletivas.
Isso posto, deve-se, mais uma vez, destacar a qualidade do filme de Marianna Brennand e o jeito forte com que nos atinge, independente de cenas catárticas ou não. Tomara provoque mais barulho e discussão, pois seu tema é dos mais urgentes.