
O trailer de Rita Lee: Mania de Você, em cartaz na plataforma de streaming Max, até que ameaça – mas, ainda bem, não entrega a cena em sua totalidade. O marido de Rita, Roberto de Carvalho, e os filhos Beto, João e Antonio leem uma carta que a cantora, morta em 2023, escreveu para eles pouco antes de morrer. Longe de nós darmos spoiler, mas preparem-se para uma cena particularmente tocante.
Dirigido pelo cineasta argentino Guido Goldberg (cuja mãe era fã do disco que trazia a faixa Mania de Você), o documentário traz um cuidadoso retrato profissional e pessoal de Rita Lee Jones, paulistana que se tornou a maior figura do rock nacional em todos os tempos. A parte musical traz seus momentos à frente do Tutti-Frutti (inclusive com depoimento do guitarrista Luiz Carlini, guitarrista e autor do famoso solo de Ovelha Negra, e cuja relação com Rita ficou abalada por décadas), a merecida aclamação popular por conta de hits como Lança Perfume e Saúde e as reinvenções pelas quais ela ou ao longo de meio século de carreira.
A parte pessoal é igualmente bem cuidada. Rita sempre foi uma artista que compartilhou seus momentos – bons e ruins – com o público, seja nas letras ou entrevistas. Mas há depoimentos fortes dos filhos de como os problemas que ela teve com a adicção afetou a família e sua batalha em se recuperar do vício. Em meio a cenas dolorosas, há registros inéditos – entre eles o casamento com Roberto de Carvalho, em 1996, em meio a turbulências familiares.
Mania de Você traz um retrato cuidadoso da carreira e da vida da cantora, mas ao mesmo tempo ajuda a contar a história do país. Rita Lee, como todos os grandes artistas daqueles tempos, sofreu com a repressão. A prisão que ela sofreu, em 1976, por suposto porte de entorpecentes, teria sido uma represália dos militares por conta de um depoimento que ela deu enquanto fazia parte dos Mutantes. Rita presenciou o assassinato de um fã do grupo dentro de um ginásio onde o grupo estava tocando – a polícia insistia que o rapaz tinha sido morto do lado de fora do lugar. Ela nunca se enquadrou na imagem de cantora “certinha” que quiseram lhe impor e se tornou a referência de rock feminino do país. E a censura… São mostradas canções que foram vetadas por motivos dos mais estapafúrdios possíveis.
Rita Lee: Mania de Você traz ainda outra carta – a cantora escrevia como poucos. Produzida nos tempos da prisão, ela anuncia a Roberto que estava grávida mas o colocava à vontade para não seguir adiante com as obrigações de pai e marido. “Eram tempos da ditadura, ela tinha medo que a situação poderia também afetar o meu pai”, justifica João Lee, que atuou como consultor do documentário. Roberto bancou a situação em todos os sentidos. E a relação que nasceu dali se tornou um dos casamentos musicais e pessoais mais importantes do showbiz em todos os tempos.
Ao Estadão, Roberto de Carvalho compartilhou suas lembranças com Rita e comentou como foi o processo de revisitá-las para o documentário. Leia abaixo:
Primeiro, vamos ao óbvio. Como nasceu a ideia de fazer o documentário?
A ideia de fazer um documentário sobre a Rita nasceu no meio da pandemia. Como a gente ainda não sabia da doença, a ideia era fazer uma revisão da vida e da carreira dela. À medida que as coisas foram acontecendo, o filme acabou acompanhando o epílogo da vida dela – o epílogo da existência da Rita nesse planetinha no qual nos encontramos – e ganhou tons mais dramáticos. Ficou muito rico, mas muito difícil para mim assistir.
Qual foi a sensação de rear essa história novamente?
Essa história se rea permanentemente na minha cabeça, na minha alma, no meu dia-a-dia, e sempre será assim. Mas assistir a parte final, quando se anuncia o epílogo da existência da Rita aqui na terra, foi duríssimo. Me quebrou por causa de algumas entrevistas e situações de vídeos da família que foram colocados no documentário. Mas quando eu comecei a assistir minha primeira impressão foi assim: “Poxa, eu tinha muito mais cabelo.” Infelizmente tudo deságua num momento extremamente dramático.
Se foi – e é – uma situação tão dolorosa, por quê decidiu colocar tudo isso num documentário?
Porque a decisão de fazer um documentário antecede todos os momentos pelos quais iríamos ar, entendeu? Antecedeu pandemia, antecedeu doença, antecedeu tudo. Foi embarcando as situações que estavam acontecendo.

Uma coisa que eu acho interessante no no documentário é que ele mostra depoimentos de pessoas Luiz Carlini, ex-guitarrista do Tutti-Frutti (banda da qual Rita era líder) e é uma figura um pouco polêmica na biografia dela. Como foi isso? Como é que você encarou?
Todo mundo que participa desse documentário tem seu coeficiente de polêmica – inclusive eu e a própria Rita. Então, eu não acho que essa coisa da da polêmica deva ser levada tão à sério. Seria carma ruim ficar cultivando coisas que que possam ter tido momentos desagradáveis. No caso específico do Carlini, houve coisas muito boas –por exemplo, o disco Fruto Proibido (1975). É disso que o documentário trata.
Uma coisa que eu acho legal da Rita Lee é que ela compartilhou com o público tudo pelo qual ela ou – seja nas letras ou entrevistas. Existe ainda uma Rita Lee que ninguém viu?
Eu particularmente consigo ver uma Rita que nem que ninguém viu que que é a minha Rita, a Rita que convivia comigo. Então tem toda uma dialética extensa, rica, prolongada, a dinâmica que se deu ao longo de quase toda a nossa vida que não está presente no documentário. Essa Rita pertence apenas a mim e à ela, né?
Você ainda sente a presença da Rita?
Ela está em toda parte: nos bichos, nos instrumentos, nas pedras da casa, no nosso quarto, dentro de mim… Tudo aqui continua exatamente da mesma maneira que estava quando ela partiu, entendeu? Quero que continue assim sempre, pelo menos enquanto eu continuar por aqui.
Você pensa em voltar a produzir música?
Sim, eu fiz algumas coisas. E toco muito, né? Mas nos últimos tempos tenho me preocupado com o caráter repetitivo das coisas. Como se tudo fosse meio reducionista, como se estivesse fazendo uma música que já existiu. Penso que todo mundo que tem uma longa estrada faz um trabalho derivativo, de um jeito ou de outro. Pega Rolling Stones, Paul McCartney… é tudo lindo, maravilhoso, mas aquilo tudo já foi feito. Para mim foi uma espécie de desestímulo.
Mas fiz algumas coisas. Fiz uma música para uma letra da Rita, que eu dei para a Maria Bethânia, que achei que não era derivativa. Mas gosto de ficar tocando. Nesse fim-de-semana mesmo eu estava tocando para o meu neto. Ele estava sentado do meu lado, eu comecei a tocar, tocar ele ficou olhando. E falou: “Vovô, você ainda toca?” Eu falei: “Toco”. “Mas está tocando bem”, ele retrucou. Eu disse então “obrigado”.
Um ouvinte atento…
Eu achei o máximo. Porque, de um modo geral, as pessoas que você tem à volta – a família, por exemplo – não ligam muito para isso. Eu estava até vendo uma entrevista do Paul McCartney, que ele dizia que ele fazia músicas, chegava para os netos dele e dizia: “Ó, acabei de fazer uma música. Vocês querem ouvir?” E os meninos: “Ah, não, obrigado.”
Fiquei muito feliz de ele ter ficado atento e ter dito: “Você tá tocando bem, né, vô?” Essas pequenas coisas têm uma um componente pirlimpimpim, sabe? Os estímulos que vêm são muito importantes e muito surpreendentes às vezes. Essa coisa do Arthur foi surpreendente. Fiquei até com vontade de fazer mais coisas.
Você se definiu certa vez como um compositor que escolheu servir a apenas um mestre – Rita Lee, claro. Hoje você estaria aberto a novas parcerias (além, claro, da canção para Maria Bethânia? Que se chama…)?
Compositor dedicado a uma só parceria. Apesar de que aconteceram algumas poucas outras. Aberto para outras parcerias, sim. Tenho uma com Arnaldo Antunes. Mas diria entreaberto, porque não estou em busca de parcerias, se acontecer terá que ser muito organicamente. A música que fizemos para Maria Bethânia chama-se Menina.

No documentário você fala sobre o momento em que tiveram uma separação de corpos, mas não de almas. Como essa relação funcionava para vocês?
A Rita descreve isso na autobiografia. Foi uma fase de álcool que acabou produzindo uma incompatibilidade na convivência. Funcionava. Mas foi bem difícil.
Você – e, pelo que vi, João – hoje são os principais mantenedores do legado de Rita Lee. Poderemos esperar mais lançamentos, documentários ou exposições em relação a esse personagem tão rico na MPB?
Sim, existem vários projetos, alguns já bem delineados, mas como esse documentário, sempre protegidos por uma sempre presente cláusula de confidencialidade. Mas acho que as coisas devem ser feitas com um certo relato, um certo pudor, senso de economia, não sair por aí com um tsunami de coisas, tem que haver muito critério.
Para terminar, qual a tua rotina hoje? Como é teu dia-a-dia nessa nova, digamos, configuração?
Família em primeiro lugar. istrando nossa empresa como sempre. Tocando bastante. Terapeuta e psiquiatra na boleia. Tenho viajado. Tenho poucos e excelentes amigos, principalmente um casal fantástico de amigos que me põe para viajar e é sempre ótimo. Tenho feito muitos amigos, as pessoas em geral são amabilíssimas comigo. Tenho conhecido políticos. Sempre me interessei por política, mas conheço poucos políticos.
Enfim, quase um viúvo alegre. Mas na verdade muito longe disso. E assim permanecerei enquanto estiver por aqui.