Um grupo de amigos se dirige para um jogo de truco na casa de um deles quando, inexplicavelmente, algo começa a ir mal. Primeiro um enorme congestionamento de carros causado, talvez, por falta de luz nos semáforos. Depois um blackout que apaga todos os gadgets eletrônicos, incluindo celulares. Para complicar, começa a nevar sobre Buenos Aires. Faltam energia e comunicação. Estão isolados. A neve, além de espessa, mostra-se fatal ao entrar em contato com a pele.
É o começo de O Eternauta, série da Netflix baseada numa famosa graphic novel argentina dos anos 1950. Há diferenças entre os quadrinhos e a série, como veremos. E a própria história da graphic novel esconde uma tragédia familiar tão intensa como a descrita tanto nos quadrinhos originais quanto na versão para streaming.
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Voltando à série, vemos Juan Salvo (Ricardo Darín), jogando truco na casa de Favalli (César Troncoso) com outros amigos e familiares. A misteriosa nevasca que se abate sobre Buenos Aires deixa Juan isolado na casa de Favalli, e ele se desespera para reencontrar a família, a ex-mulher e a filha.
Logo vão descobrir que a única maneira de se defender é vestir-se da cabeça aos pés com roupas impermeáveis à neve fatídica. O que inclui o uso de máscaras e capacetes. Desse modo, podem sair às ruas em busca de familiares perdidos, alimento, água e abrigo mais seguro. Tentam descobrir o que acontece no país - e talvez no mundo.
Como toda trama apocalíptica, esta também traz situações que revelam o melhor e o pior dos seres humanos. Se alguns estão prontos para se doar pelo bem comum, outros só pensam em si e nos seus próximos, e não hesitam em cometer crimes em nome da sobrevivência. Ao longo dos seis episódios da primeira temporada, as pessoas encontram dificuldades crescentes em escapar das armadilhas que o destino parece lhes pregar. Nesse aspecto, não se destaca muito de outras histórias de catástrofe e de invasão do mundo por alienígenas.
A originalidade fica por conta do tom local emprestado à história. E também à pegada coletiva da ação. Embora haja protagonistas, estes sempre agem em grupo e quase nunca de forma solitária. Ninguém é super-herói, e a força vem do grupo.
O bom uso da tecnologia digital permite ambientar a trama numa Buenos Aires semidestruída e coberta pela neve implacável. As ruas estão atulhadas de carros abandonados e avariados. Há cadáveres por toda parte. Mercados estão abandonados. Há saques em toda parte e bandos armados vigiam territórios conquistados. Soldados custam a dar as caras e, quando surgem, nem parecem representar algum poder central - se é que este ainda existe.

À atuação intensa tanto de Darín quanto de Troncoso e de outros personagens junta-se à técnica da filmagem e dos efeitos especiais para tornar o enredo bastante imersivo para o espectador. Enfim, O Eternauta é um produto de qualidade, dirigido pelo talentoso Bruno Stagnaro, autor de Pizza, Cerveja e Cigarro (Pizza, Birra y Faso), filme vencedor do Festival de Gramado em 1998.
Na série, Stagnaro trabalha com um enredo complexo, envolvente, nada banal, mas não deixa de lançar mão de clichês do cinema-catástrofe como monstros digitais que infernizam a vida humana e ameaçam destruí-la. Apesar desses recursos fáceis, prevalece uma ideia de resistência, reforçada pelo fato de Juan ser um veterano da Guerra das Malvinas (1982) e estar habituado ao combate e ao manejo de armas. E ao trabalho em equipe.
As alusões à vida real não param aí. A Argentina, com sua história política conturbada, parece pulsar por trás da chave alegórica proposta pela série. A sensação de estar sendo invadido por algo estranho e implacável pode soar familiar aos habitantes de um país em quase permanente instabilidade, embora com ado glorioso e suficientemente próximo para ser lembrado como o mais rico, o mais escolarizado, culto e promissor da América do Sul. As distopias servem (também) para lembrar que tudo o que parece sólido pode, de uma hora para outra, desmanchar-se no ar.

Críticos têm se queixado de que a série, apesar de boa, não repete a tensão política expressada na graphic novel original.
São contextos um tanto diferentes, embora possam ser aproximados. No mundo instável da Guerra Fria internacional e escaramuças internas entre peronistas e golpistas, Héctor Germán Oesterheld bateu em sua máquina de escrever a história que chamaria de O Eternauta. Desenhados por Francisco Solano López, os quadrinhos começam a ser publicados na revista Hora Cero Semanal em 1957. São um grande sucesso de vendas, e a história continua a sair até 1959. Em seu cerne, é a mesma trama da Netflix, a de um grupo de personagens preso fora de suas casas quando uma nevasca mortal cai sobre a cidade.
Fazendo uma alegoria de fundo político da catástrofe que desaba de imprevisto, Oesterheld parece prefigurar o cataclisma real que viria alguns anos depois. Em 1976 ocorre o golpe militar que instaura uma das ditaduras mais sanguinárias da América Latina. Estima-se em cerca de 30 mil os desaparecidos e mortos pelos órgãos de repressão. Entre eles, o próprio Oesterheld, suas quatro filhas - Diana, Estela, Beatriz e Marina - e dois genros, todos vítimas do terrorismo de Estado.
Hoje, Oesterheld é considerado como o autor da mais importante obra de ficção científica da Argentina. A adaptação prova sua atualidade renovada. Inclusive por um aspecto importante, ao destacar o caráter coletivo da resistência a uma força opressora. Escreve ele, no prefácio da HQ El Eternauta, de 1957: “O herói verdadeiro de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Reflete assim, ainda que sem intenção prévia, meu sentimento mais íntimo: o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solo.” Em tempo de culto maníaco ao individualismo, faz todo o sentido. Valia para os anos 1950, vale mais ainda para o presente.