Em uma das tantas conversas por telefone, a diretora de cinema e teatro Monique Gardenberg, de 66 anos, ouviu do amigo Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023) um ensinamento jamais esquecido: “Viva a perda na arte porque ela vai te salvar!”. Foi assim quando enfrentou o luto pela irmã, a produtora Sylvia Gardenberg (1960-1998), e estreou como encenadora na peça Os Sete Afluentes do Rio Ota, e, agora, para amenizar a partida de outro irmão, o fotógrafo André Gardenberg (1956-2019). “Desde que André se foi eu não tinha feito nada”, confessa. “De certa forma, estou também voltando à vida.”
A retomada criativa de Monique é o espetáculo Senhora dos Afogados, tragédia de Nelson Rodrigues (1912-1980) repleta de simbolismo, principalmente sobre a morte, que marca uma série de outras ressurreições. Projeto sonhado por Zé Celso há mais de duas décadas, a montagem em cartaz no Sesc Pompeia até o dia 11 e, a partir do dia 30, no Teatro Oficina, é a primeira produção da companhia depois da morte do seu principal fundador, em 6 de julho de 2023. O artista foi vítima das complicações de queimaduras em um incêndio no seu apartamento, em São Paulo.

Logo depois da cremação, em Itapecerica da Serra, Monique deu carona ao ator Marcelo Drummond, viúvo de Zé Celso, e ouviu surpresa a proposta de concretizar Senhora dos Afogados. “Apesar de ser a sua preferida entre as peças do Nelson, Zé achava difícil encená-la porque o próprio autor dá todas as direções no texto e se torna complicado imprimir uma marca”, conta Drummond.
Monique, impactada, ficou em silêncio e só no dia seguinte retornou ao assunto, dando o seu sim. “Zé foi a primeira pessoa da classe artística a reconhecer meu trabalho”, lembra. “Falou que, com a minha experiência no cinema, saberia construir uma encenação e, graças a ele, driblei a insegurança de montar Os Sete Afluentes do Rio Ota.”

Escrita em 1947, Senhora dos Afogados é uma das obras mais complexas de Nelson Rodrigues, tanto pelos temas como pela estrutura subjetiva. Em uma casa à beira-mar, uma família é atormentada por desejos reprimidos e convive com fantasmas de quem perdeu a vida nas águas da praia. Misael (interpretado por Drummond) carrega um segredo que assombra Eduarda (papel de Leona Cavalli) desde o dia do casamento deles. Moema (a atriz Lara Tremouroux), única filha viva dos dois, é obcecada pelo pai e, prestes a se casar, percebe que o Noivo (o ator Roderick Himeros) desperta contraditórios sentimentos na sogra.
“É uma tragédia delirante, tudo ultraa o limite da realidade e eu me deixei levar pela intuição e liberdade característica do Oficina”, diz a diretora. “Enxergo ali muito de Macbeth, de Shakespeare, de tragédias gregas, como Electra, e faço homenagens à coreógrafa Pina Bausch e ao poeta Antonio Cicero.”
Como uma cineasta, responsável pelos filmes Benjamim (2003), Ó Pai, Ó (2007) e Paraíso Perdido (2018), Monique investe nas imagens possíveis de serem extraídas do universo rodrigueano. O processo, desde o início, foi diferente do que costumava ser desenvolvido por Zé Celso. Só para as leituras do texto, o elenco dedicou um mês para depois criar cenas. “Monique concentra a força na imagem, deixa a cena correr e, depois, comenta e faz ajustes”, explica Drummond, que, pela primeira vez, em 37 anos de carreira, foi comandado por outro diretor que não Zé Celso. A encenadora complementa a observação: “O fato de eu ser uma cineasta me coloca em xeque e me faz mostrar agens que, comumente no teatro, seriam só narradas.”
Leia também
Leona Cavalli, que interpreta Eduarda, é íntima da linguagem do Oficina. Recém-chegada de Porto Alegre, ela estreou profissionalmente na pele de Ofélia na peça Hamlet, dirigida por Zé Celso em 1993, e ganhou visibilidade como uma das protagonistas de Cacilda!, espetáculo que homenageou Cacilda Becker (1921-1969), no fim da década de 1990. Depois de 20 anos, Leona e Zé Celso selaram a paz e retomaram a parceria em sua derradeira encenação, Fausto (2022), vista no Sesc Pinheiros.
“Nós rompemos porque eu queria fazer cinema, televisão e o Zé não aceitou esta decisão, mas, quando montamos Fausto, ele disse que eu tinha aberto a cabeça e considerou positiva a minha saída do Oficina”, lembra ela, que trabalha pela primeira vez com Monique Gardenberg. “Como diretora, ela trouxe contemporaneidade para Senhora dos Afogados, porque Eduarda é uma mulher à flor da pele, com um desejo violento diante do que não viveu e, assim, falamos das transformações femininas.”

Além do elenco fixo ou íntimo do Oficina, Monique, conhecida pela capacidade aglutinadora, conta com a participações de, entre outros, as atrizes Cristina Mutarelli, Giulia Gam, Michele Matalon e Muriel Matalon, que formam o coro das vizinhas. Regina Braga, intérprete de Dona Marianinha, a avó doida da família, se destaca na montagem, e tê-la no projeto era um desejo manifestado por Zé Celso.
Giulia Gam, que também trabalhou em Cacilda!, volta ao teatro depois de seis anos e garante que a diretora entrou em sintonia com o universo de Zé Celso. Um exemplo é que ele sempre deu espaço privilegiado em suas encenações ao coro, tradição do teatro grego, que, como uma voz coletiva, comenta as ações da peça.
“Monique transformou as vizinhas neste coro e vai mais longe, porque elas julgam o tempo inteiro o que que acontece em cena”, comenta a artista que, sob a direção de Antunes Filho (1929-2019), atuou, em Álbum de Família e Toda Nudez Será Castigada, outros clássicos de Nelson, em 1984. “Mas eu só entendi a partitura e as inflexões de seus personagens quando participei de A Vida Como Ela É, série comandada pelo Daniel Filho na Globo, em 1996, e considero Senhora dos Afogados o seu mergulho mais profundo no inconsciente e desejos velados.”
‘Senhora dos Afogados’
- Teatro do Sesc Pompeia. Rua Clélia, 93, Pompeia.
- Terça a sábado, 20h; domingo e feriado, 18h. R$ 70,00. Até 11 de maio.
- A partir do dia 30, o espetáculo cumpre temporada no Teatro Oficina. Rua Jaceguai, 520, Bela Vista.