Logo no dia seguinte de sua volta à Casa Branca, em 20 de janeiro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tomou uma decisão que contemplou uma de suas principais promessas de campanha. Por meio de um decreto, ele determinou o fim dos programas identitários, chamados de DEI (diversidade, equidade e inclusão) ou DEIA (com o acréscimo do “A” de ibilidade), em todos os órgãos do governo federal americano.
Em sua cruzada contra os programas DEI, destinados a beneficiar pessoas que pertencem a grupos sub-representados e considerados preteridos no mundo do trabalho, como mulheres, negros, trans e pessoas com deficiência, Trump também revogou um decreto do ex-presidente Lyndon Johnson (1963-1969), que obrigava os fornecedores governamentais a realizar “ações afirmativas”, para promover a integração racial nas empresas.
O dispositivo, voltado originalmente para atender os negros após a aprovação da Lei de Direitos Civis, em 1964, foi alterado pelo ex-presidente Barack Obama (2009-2017) em 2014 e ou a incluir “ações afirmativas” de gênero e sexo entre as exigências feitas pelo governo de seus fornecedores.
“As pessoas não devem ser contratadas com base em suas deficiências, na cor de suas peles, em seus gêneros, nas suas raças. Nada disso importa”, afirmou a secretária de Imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, após o anúncio das medidas. “O que importa para esta istração é o quanto você pode fazer bem o seu trabalho. É sobre competência, qualificação e mérito.”
Apesar de as medidas implementadas por Trump atenderem às expectativas de grande parte de seus eleitores – incluindo um contingente significativo que pertence aos grupos beneficiados pelos programas DEI, mas se opõe à sua adoção – elas geraram uma onda de indignação e revolta de seus críticos e adversários, muitos dos quais apoiam as políticas identitárias que ganharam força nos governos democratas de Obama e principalmente de Joe Biden (2021-2025).
Cultura woke
“Esses decretos nada mais são do que uma tentativa de fazer o nosso país retroceder e nada fazem para ajudar a resolver o custo de vida das famílias americanas que trabalham duro”, disse a deputada da oposição, Yvette D. Clarke, líder da bancada negra no Congresso, em comunicado divulgado logo após a decisão de Trump.
“O que ficou claro é que, em seu segundo mandato, Trump está trabalhando para levar a América de volta aos tempos pré-direitos civis”, afirmou Chris Scott, estrategista do Partido Democrata, ao jornal britânico The Guardian, uma semana depois de o presidente americano editar os decretos. “Os ataques infundados de Trump às políticas DEI são ataques à promessa da América, à promessa de que todos devem ser capazes de construir a vida dos seus sonhos sem barreiras pelo caminho”, declarou, por sua vez, a antropóloga Andrea Abrams, diretora executiva da Coalização pela Defesa dos Valores Americanos, um entidade de apoio aos direitos civis e aos programas de diversidade e inclusão, ao jornal USA Today.
Mas mesmo diante da reação negativa que as medidas implementadas por Trump geraram junto a pessoas e grupos considerados progressistas, várias grandes empresas americanas, como o Google, a Meta (controladora do Facebook, do Instagram e do WhatsApp), o McDonald’s, a Target, a PepsiCo e a IBM, anunciaram a redução ou o encerramento de seus programas DEI nas semanas que se seguiram às mudanças que ele promoveu.
Até a Disney, vista até pouco tempo atrás como uma espécie de meca da cultura woke – termo usado para designar as políticas voltadas a dar mais espaço às minorias e mudar comportamentos apontados como “politicamente incorretos” – anunciou alterações na área após as ações de Trump. Mesmo antes de sua posse, ainda durante o período de transição, outras gigantes americanas, como Amazon, Walmart, Boeing e American Airlines, já haviam seguido trilha semelhante.
‘Capitulação oportunista’
Isso levou muitos analistas, favoráveis e contrários às mudanças, a atribuir a guinada das empresas a um possível “efeito Trump”. Os grandes defensores dos programas DEI classificaram a metamorfose das empresas como uma “rendição” e uma “capitulação oportunista” à “agenda conservadora” e “de direita” do presidente americano.
Tal percepção foi reforçada pela súbita aproximação de fundadores e CEOs das Big Techs, como Jeff Bezos, da Amazon, e Mark Zuckerberg, da Meta, com Trump. Zuckerberg e Bezos estiveram, inclusive, em sua cerimônia de posse, na Rotunda do Capitólio, e o encontraram em seu resort em Mar-a-Lago, na Flórida, em dezembro, um mês antes.

Agora, ainda que essas empresas tenham revisto suas iniciativas DEI por causa de Trump, o que é difícil afirmar com segurança, seu retorno à Casa Branca não explica tudo – nem quase tudo – o que está acontecendo nessa área nos Estados Unidos. A mudança vinha ocorrendo bem antes da vitória de Trump nas eleições, em novembro de 2024, e antes mesmo da campanha eleitoral, como mostram as inúmeras reportagens sobre o tema produzidas por grandes veículos de comunicação americanos e internacionais.
Trump pode até ter dado o empurrão final, para as empresas que não haviam revisto as suas políticas DEI reavaliarem as suas ações ou acabarem com elas. No entanto, o recuo que está acontecendo nos programas DEI é um fenômeno bem mais amplo, que antecede em pelo menos dois anos as eleições e abrange universidades, escolas de níveis básico e médio e até os esportes.
“As ações do Trump representam, na verdade, uma tentativa de ‘lacração’ desse processo”, disse ao Estadão Caio Magri, presidente do Instituto Ethos, uma organização voltada à promoção de práticas socialmente responsáveis pelas empresas no País, que está acompanhando de perto as mudanças que estão ocorrendo no setor nos Estados Unidos. “O ataque às ‘ações afirmativas’ de diversidade, equidade e inclusão é um retrocesso civilizatório que não começou agora.”
Entre 2023 e as eleições do ano ado, diversas grandes empresas americanas já vinham anunciando a revisão de suas políticas DEI, em maior ou menor grau, conforme o caso, como Walmart, Microsoft, Boeing, Ford, Caterpillar, Black & Decker e Harley Davidson, além da japonesa Toyota, que tem uma base reforçada nos Estados Unidos (veja o quadro abaixo).

Algumas empresas de tecnologia que anunciaram mudanças após a posse de Trump, como Google e Meta, também já vinham adotando medidas nessa direção desde 2022. A Microsoft, a Zoom e a Snap, além da Tesla e do X, do empresário Elon Musk, fiel escudeiro de Trump e idealizador do novo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês), começaram a revisar suas ações na área bem antes de sua volta à presidência.
“O trabalho de mudança associado aos programas DEI deixou de ser crítico para os negócios”, afirmou um funcionário da Microsoft, em tom de desalento, num e-mail enviado para milhares de empregados da empresa, obtido com exclusividade pelo site Business Insider, ao comentar a demissão da equipe de diversidade e inclusão da companhia, em julho de 2024.
“O termo ‘DEI’ ficou pesado, em parte porque é entendido por alguns como uma prática que sugere tratamento preferencial a certos grupos em detrimento de outros”, disse Janelle Gale, chefe do departamento de recursos humanos da Meta, num comunicado oficial também enviado aos funcionários, obtido pelo site de notícias Axios, no qual ela abordava a decisão da empresa de acabar com o seu programa de diversidade e inclusão.
Em abril do ano ado, sete meses antes das eleições americanas, o CEO da Disney, Robert Iger, já dava sinais de que uma reviravolta na área, confirmada depois da posse de Trump, estava em gestação na empresa. “Sempre acreditei que temos a responsabilidade de fazer o bem no mundo. Mas sabemos que o nosso trabalho não é avançar qualquer tipo de agenda”, afirmou Iger, durante um encontro anual, realizado de forma virtual, com acionistas da Disney. “Nosso trabalho, antes de mais nada, é entreter e, ao contar grandes histórias, continuar a ter um impacto positivo no mundo e a inspirar futuras gerações, como temos feito há mais de 100 anos.”

No fim de 2024, num primeiro movimento anti-DEI, a Disney já havia deixado de informar duas de suas iniciativas nesse campo nos relatórios periódicos enviados à SEC, o xerife do mercado americano de capitais, sugerindo que elas teriam sido interrompidas ou extintas. E, em fevereiro, a empresa anunciou que vai deixar de considerar os resultados das ações de diversidade e equidade e se concentrar mais no desempenho do negócio, para pagamento de bônus aos executivos.
Mesmo o aviso que aparece antes de alguns dos filmes mais antigos da Disney, como Dumbo, Peter Pan e Aristogatas, vai mudar, de acordo com um memorando interno divulgado na semana ada pela chefe do setor de recursos humanos da empresa, Sonia Coleman, também obtido com exclusividade pelo Axios. Em vez de informar que os filmes “incluem representações negativas e/ou tratamento injusto de pessoas ou culturas”, como acontecia até agora, o aviso deverá trazer os seguintes dizeres: “Este programa é apresentado como produzido originalmente e pode conter estereótipos ou representações negativas”.
Essa transformação que está ocorrendo nos programas DEI das empresas nos Estados Unidos já vem se refletindo nos números há algum tempo. Segundo uma pesquisa da Revelio Labs, especializada em dados e análises do mercado de trabalho americano, as contratações por meio de programas DEI pelas principais empresas do país caíram 5% em 2023 e outros 8% nos primeiros meses de 2024, depois de crescerem em progressão geométrica em 2020 e 2021 e diminuírem bem o ritmo de expansão em 2022. Em julho do ano ado, conforme a Revelio, o total de funcionários dedicados aos programas DEI nas grandes companhias havia caído 10% em relação ao pico, atingido no início de 2023.
Ainda de acordo com a Revelio, os gastos com funções DEI entre as empresas incluídas no índice S&P 500, que reúne as ações das 500 companhias com os maiores valores de mercado e com maior liquidez na Bolsa de Nova York, caíram 10% em novembro de 2024, para US$ 1,3 bilhão, em relação ao mesmo mês de 2022. Nos casos da Tesla e da Meta, destacados pela Revelio, as despesas com os departamentos DEI tiveram uma queda de 84% e 53%, respectivamente, no mesmo período.
‘Treinamento enviesado’
Daqui para a frente, diante do desmantelamento dos programas federais de diversidade e inclusão e do apoio de Trump para que o setor privado siga o mesmo caminho, a expectativa é de que os gastos na área diminuam ainda mais, e em ritmo mais acelerado, ainda que grandes companhias, como a Apple e a Costco, gigante do varejo americano, tenham decidido manter as suas políticas DEI, por acreditar que elas favorecem o pensamento “fora da caixa” e a inovação (leia a reportagem que aborda os casos das empresas que decidiram manter os seus programas DEI).
“É difícil imaginar que essa tendência não continuará nos próximos meses. Empresas dirigidas por líderes empresariais que não apoiam as políticas DEI agora podem, com toda a legitimidade, recuar em suas iniciativas sem reprovação”, declarou o professor David Collings, da Trinity Business School, de Dublin, na Irlanda, ao site britânico Raconteur, especializado em negócios. “Ao atingir não apenas os órgãos federais, mas também fornecedores privados e instituições financiadas pelo governo, os decretos (de Trump) remodelaram o cenário jurídico e operacional para a atuação de empresas e universidades no país”, disse Seth J. Chandler, professor do Centro de Direito da Universidade de Houston, no Texas, à revista Fortune.
A próxima companhia a rever os seus programas DEI pode ser o banco JP Morgan Chase. No início de fevereiro, o CEO da instituição, Jamie Dimon, um dos mais entusiasmados defensores dos programas DEI até pouco tempo atrás, comentou num evento fechado que poderá cortar algumas iniciativas para redução de custos, especialmente na área de treinamento de funcionários. “Eu nunca acreditei muito em treinamento enviesado”, disse Dimon numa gravação à qual a agência Bloomberg teve o com exclusividade. “Eu vi como eles estavam gastando dinheiro em algumas dessas m*rdas. Simplesmente vou cancelá-los. Não gosto de gastar dinheiro com burocracia.”
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A afirmação de Dimon simboliza, em boa medida, o estado de espírito predominante no momento em algumas das principais empresas americanas em relação às práticas DEI, apesar da desaprovação de opositores de Trump e de grupos considerados progressistas, dentro e fora dos Estados Unidos, que defendem as políticas de diversidade e inclusão.
“A lua de mel acabou”, afirmou o consultor Cecil Howard, ex-chefe do departamento de Diversidade da Universidade do Sul da Flórida e defensor dos programas DEI, à ABC News, divisão de jornalismo da rede americana de TV aberta. “A forte reação às políticas DEI é real. Com isso, quero dizer que ela está ocorrendo de uma forma que eu nunca tinha visto antes”, disse Johnny Taylor, presidente da Sociedade para Gestão de Recursos Humanos, que também apoia as políticas de diversidade e inclusão. “Os CEOs estão literalmente pisando no freio nos programas DEI.”
A desidratação de projetos na área por grandes companhias dos Estados Unidos, que ganhou tração em 2022 com as demissões em massa realizadas pelas Big Techs, representa um duro revés para o movimento que prosperou após a morte do afro-americano George Floyd por um policial, em maio de 2020, no primeiro mandato de Trump. O caso de Floyd gerou violentos protestos pelo país e turbinou movimentos identitários como o Black Lives Matter (BLM) e ações contra o racismo e em favor das práticas DEI, não só no mundo dos negócios, mas na sociedade americana de forma geral.
Nos últimos anos, infelizmente, a tendência foi transformar os programas DEI em comissariados políticos, para ir atrás de pessoas com visões diferentes
Jonathan Alpert, psicoterapeuta dos EUA
Foi após a posse de Joe Biden na Casa Branca, no início de 2021, no entanto, que as ações na área ganharam tração e se espalharam pela arena empresarial e por outras atividades. Também por meio de um decreto, Biden determinou logo no começo de seu governo a criação de departamentos voltados exclusivamente para os programas DEI em toda a istração federal, mantendo a exigência de que os fornecedores do governo desenvolvessem “ações afirmativas” na área – justamente as iniciativas agora revertidas por Trump.
Tudo isso amplificou em muitos decibéis as políticas voltadas à diversidade e à inclusão, que já vinham ganhando espaço, em ritmo mais lento, desde antes da morte de Floyd. Grandes gestores de recursos de clientes, como a Black Rock e a Vanguard, por exemplo, que istram trilhões de dólares de fundos de pensão e de investidores individuais e corporativos, já estavam exigindo das empresas há alguns anos uma “agenda mínima” de políticas DEI – bem como de práticas ESG (voltadas à preservação do meio ambiente, à responsabilidade social e à governança corporativa, na sigla em inglês) – para incluir suas ações e seus títulos de dívida em seus portfólios.
O CEO da Black Rock, Larry Fink, que foi um dos primeiros a embarcar na onda DEI e nos últimos tempos vem suavizando as exigências feitas às empresas em que investe, para surpresa de muitos de seus críticos, reconheceu isso publicamente, numa entrevista ao The New York Times em 2017, três anos antes da morte de Floyd.
“Os comportamentos têm de mudar e esta é uma coisa que nós estamos pedindo para as empresas fazerem”, afirmou Fink na entrevista. “Você tem de forçar comportamentos. Se você não forçar comportamentos, sejam de gênero, de raça ou do que for para compor a sua equipe, você será impactado (negativamente).”
A certa altura, durante o governo Biden, a mentalidade DEI parecia ter se tornado hegemônica e irreversível. Isso acabou produzindo, em alguns casos, o efeito oposto ao que se pretendia com a implantação dos programas. O “patrulhamento” dos críticos era implacável. Muitos profissionais que se sentiram prejudicados por se posicionar contra a forma adquirida pelas políticas DEI disseram ter sido marginalizados e perseguidos, às vezes até perdendo seus empregos, conforme vários relatos divulgados nas redes sociais e em veículos de comunicação.
Feudos
Para muitos analistas que se opõem aos programas de diversidade e inclusão, os departamentos que cuidam da área nas empresas e em outras organizações haviam conquistado uma relevância desproporcional e acabaram se transformando em “feudos”. Além disso, também de acordo com relatos divulgados nas redes e pelos meios de comunicação, profissionais contratados por critérios de diversidade aram a ser estigmatizados pelos demais como “funcionários DEI”, reforçando o resultado inverso ao desejado pelos programas.
Um estudo realizado pelo Network Contagion Research Institute (NCRI), em parceria com o Laboratório de Percepção Social da Universidade Rutgers, de Nova Jersey, divulgado no fim de 2024, mostrou que, em vez de reduzir a discriminação no ambiente de trabalho, como seria de se esperar, os programas DEI acabam, muitas vezes, impulsionando a hostilidade e as tensões raciais entre os funcionários.

“As evidências apresentadas revelam que, embora pretendam combater o preconceito, algumas narrativas anti-opressivas dos programas DEI podem gerar um viés hostil e aumentar a desconfiança racial, as atitudes preconceituosas, o ‘policiamento’ autoritário e o apoio a comportamentos punitivos na ausência de evidências de uma transgressão que mereça (de fato) punição”, apontou o estudo, que avaliou a reação dos entrevistados a textos que costumam nortear o treinamento dos funcionários pelas empresas.
Segundo o consultor e psicoterapeuta Jonathan Alpert, com mestrado em psicologia na Yeshiva University, de Nova York, os programas DEI têm causado crises de ansiedade em muitos de seus pacientes e até colegas de profissão, entre outros efeitos negativos, por causa do medo que eles sentem de ter problemas na área e de ser “cancelados”.
“No seu melhor, os programas de diversidade deveriam nos lembrar de que todos nós merecemos ser tratados igualmente e com respeito, independentemente de quem somos. Nos últimos anos, infelizmente, a tendência em inúmeras instituições americanas foi transformar os programas DEI em comissariados políticos, para ir atrás de pessoas com visões diferentes, e eles terminaram promovendo, em muitos casos, mais divisão nas instituições que deveriam ajudar”, disse Alpert, numa entrevista ao canal Fox Business, em janeiro.
‘Demonizações’
Mesmo opositores de Trump e defensores das políticas de diversidade e inclusão reconhecem que, na prática, a forma como os críticos dos programas DEI são tratados, não só nas empresas, mas também em órgãos governamentais, escolas, universidades e na esfera cultural, acabou por trabalhar contra eles e seus apoiadores.
“Ser contra iniciativas DEI não faz de você um supremacista branco. Conversas e demonizações como essa explicam, em boa medida, porque tomamos um pé na bunda”, afirmou Michael LaRosa, ex-secretário de imprensa da ex-primeira-dama Jill Biden e ex-assessor especial do ex-presidente Joe Biden, em publicação no X. Ele se referia à visão de muitos apoiadores da ex-candidata democrata Kamala Harris, derrotada por Trump nas eleições, em relação aos críticos das políticas de diversidade e inclusão.
Essa visão desfavorável em relação aos programas DEI, porém, está longe de ser uma unanimidade não só para as empresas, mas também para os seus profissionais. Uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center, dedicado à detecção das tendências que estão moldando os Estados Unidos e o mundo, apurou que 52% dos entrevistados ainda consideram que os programas DEI são geralmente positivos, apesar de o número de trabalhadores que os veem de forma negativa ter dado um salto de 5 pontos porcentuais em 2024 em relação a 2023, para 21% do total.
Ter uma equipe de trabalho diversificada e representativa dos diferentes segmentos da sociedade é bom para os negócios
Mark Cuban, empresário
Os defensores das políticas DEI argumentam que os esforços para ampliar a diversidade, a equidade e a inclusão nas empresas ainda continuam a ser fundamentais para os negros e as mulheres poderem “equilibrar o jogo”, em nível salarial e no tratamento recebido nos locais de trabalho, o que não aconteceu até agora, de acordo com diversas pesquisas sobre o tema.
“Ter uma equipe de trabalho diversificada e representativa dos diferentes segmentos da sociedade é bom para os negócios”, disse o empresário Mark Cuban, um dos donos do time da NBA Dallas Mavericks, apoiador de Kamala Harris nas eleições e defensor das políticas DEI, em publicação feita no X. “A perda das empresas ‘DEI-fóbicas’ é o meu ganho.”
Ainda assim, como mostram os números e os casos mencionados acima, não dá para negar que o auge da onda DEI ou. “Se 2020 foi o ano em que a diversidade, a equidade e a inclusão decolaram e os empresários e executivos declararam seus compromissos eternos (com os programas DEI), 2024 marcou o início do recuo anti-woke”, disse a revista The Economist em reportagem sobre o tema publicada em novembro do ano ado. Dois meses antes, a revista já havia publicado outra reportagem sobre o assunto, intitulada “A América está se tornando menos woke”, expondo a mudança que já estava em curso antes da eleição de Trump.
Hoje, algumas pessoas estão tão acostumadas com um tratamento diferenciado que o tratamento igualitário ou a ser considerado como discriminação
Thomas Sowell, economista
De certa forma, os excessos que ocorreram ao longo do tempo na implementação dos programas DEI, relatados em profusão nos meios de comunicação e nas redes sociais, acabaram reforçando, na avaliação de alguns analistas, a resistência aos programas de diversidade e inclusão no mundo dos negócios e em outras áreas.
Boa parte das críticas teve origem nos grupos considerados conservadores, que tinham perdido espaço no país, com a derrota de Trump nas eleições de 2020. Apesar de a maioria dos opositores às políticas de diversidade e inclusão ser composta por homens e pela população branca de forma geral, que se julgam os mais prejudicados pelo movimento woke, conforme as pesquisas, muita gente pertencente aos grupos beneficiados pelos programas DEI, como mulheres, negros e latinos, mas que valorizam a ascensão profissional obtida por mérito e pelo esforço individual, também engrossaram o coro.
“Os direitos civis costumavam se relacionar com o tratamento de todos da mesma forma. Mas hoje algumas pessoas estão tão acostumadas com um tratamento diferenciado que o tratamento igualitário ou a ser considerado como discriminação”, afirmou o economista Thomas Sowell, de 94 anos, que, apesar de ser negro, é um crítico contundente das políticas DEI, ao comentar a questão.
Ativistas
Ao mesmo tempo, investidores e analistas de mercado aram a olhar com lupa o impacto dos programas DEI sobre os resultados das empresas. Acionistas minoritários anti-DEI aram a frequentar assembleias das companhias de capital aberto questionando o elevado volume de gastos feitos na área, que alcança cerca de US$ 8 bilhões por ano, em média, segundo um estudo realizado pela Harvard Kennedy School, uma das escolas de istração pública mais conceituadas dos Estados Unidos.
Outra pesquisa, realizada pelo site salary.com, mostrou que o salário médio de um chefe do departamento DEI nos Estados Unidos era de US$ 235 mil por ano e que os salários mais altos na área chegavam a US$ 435 mil por ano, “pondo pilha” nos ativistas que aram a questionar os custos dos programas de diversidade e inclusão.
Em junho de 2023, uma decisão tomada pela Suprema Corte dos Estados Unidos acabou turbinando também o movimento. Num processo em que as universidades Harvard e da Carolina do Norte eram acusadas de praticar discriminação nas issões de estudantes, ao privilegiar a aceitação de candidatos de grupos sub-representados, a Suprema Corte decidiu por 6 votos a 3 que as “ações afirmativas” das instituições violavam a Cláusula de Proteção Igualitária da 14ª Emenda da Constituição americana.
A decisão, que desidratou o uso de políticas DEI nas issões de estudantes, era restrita às universidades, mas gerou preocupação entre as empresas e seus executivos de que a Suprema Corte possa adotar o mesmo critério para julgar casos semelhantes relacionados ao mundo dos negócios, com base no Capítulo VII da Lei dos Direitos Civis, de 1964, que proíbe discriminação no emprego por raça, cor, religião, sexo e nacionalidade. Muitas companhias ficaram na defensiva, o que acabou estimulando, em alguns casos, uma reavaliação preventiva de seus programas DEI, em especial na seleção e na promoção de funcionários.
Nunca pretendemos fazer parte de uma discussão que divide as pessoas. Nosso negócio é reunir as pessoas para tomar uma cerveja
Brendan Whitworth, CEO da AB InBev na América do Norte
A decisão também impulsionou a ação de organizações e ativistas considerados conservadores, que começaram a expor nas redes sociais as práticas DEI de grandes empresas americanas, vistas como “discriminatórias”, ameaçando as companhias com ações judiciais caso elas não fossem revistas. A iniciativa contou com o apoio de empresários e financistas influentes como Elon Musk, um militante “xiita” contra o wokismo e os programas de diversidade e inclusão, e Bill Ackman, gestor de um dos maiores fundos hedge americanos e também apoiador de Trump.
Segundo reportagens sobre o assunto publicadas nos Estados Unidos, foi principalmente a ação dos ativistas que levou até agora cerca de vinte pesos-pesados dos negócios a mudar ou acabar com seus projetos na área, principalmente em 2024, considerado como o “ano da virada” nas políticas DEI no país. Quase todas essas empresas negam que tenham mudado seus programas por causa disso e dizem que as mudanças já estavam em discussão, mas o fato é que os anúncios dos recuos vieram depois da pressão pública dos ativistas.
O movimento anti-DEI também se insurgiu contra um anúncio da Bud Light, que estampou a influenciadora trans Dylan Mulvaney em latas de cerveja da marca, em abril de 2023. A peça gerou indignação em consumidores e em grupos considerados conservadores e levou a um boicote da cerveja, que contou com o apoio do cantor Kid Rock, cujo efeito nas vendas, no valor de suas ações e em sua imagem foi devastador.
De acordo com informações do canal CBS News, o boicote provocou um tombo de 23% nas vendas da cerveja só naquele mês, em relação a igual período do ano anterior, e à perda da liderança de mercado da Bud Light, produzida pelo grupo Anhe-Busch Inbev (ABI), para a cerveja mexicana Modelo Especial. Em meados de 2024, a Bud ainda perdeu o segundo lugar em vendas para a Michelob Ultra, também fabricada pelo ABI.
O boicote levou à suspensão da campanha com a influencer, ao afastamento de dois executivos que lideraram a iniciativa, à revisão das políticas DEI da empresa e a um pedido formal de desculpas do CEO do grupo na América do Norte, Brendan Whitworth. “Nunca pretendemos fazer parte de uma discussão que divide as pessoas”, disse Whitworth, em comunicado à imprensa. “Nosso negócio é reunir as pessoas para tomar uma cerveja.”
Motivação social
Um caso semelhante aconteceu com a fabricante de tratores e outros equipamentos agrícolas John Deere, em julho do ano ado. Embora seja dependente de agricultores para a venda de seus equipamentos, muitos dos quais se identificam com o pensamento considerado conservador, a John Deere viu expostas no X pelo cineasta e ativista anti-DEI Robby Starbuck as suas principais ações na área, incluindo o patrocínio de um evento LGBTQ+ que permitia entrada de crianças a partir de três anos. A exposição da empresa despertou a ira de consumidores e internautas, obrigando-a reavaliar as suas iniciativas.
No fim, a John Deere acabou anunciando que iria reduzir ou cancelar seus projetos DEI nos Estados Unidos. “Não participaremos mais nem apoiaremos desfiles, festivais ou eventos sociais ou culturais ao ar livre”, afirmava o comunicado divulgado pela empresa. “Vamos revisar todos os nossos materiais e políticas de treinamento para garantir que não haja mensagens de motivação social.”
Em 2023, a Target, que anunciou recentemente o cancelamento de seus programas de diversidade e inclusão, foi outra empresa que entrou na “linha de tiro” dos ativistas. Sofreu um boicote dos consumidores e recebeu críticas fortes nas redes por causa do destaque dado à sua coleção de produtos voltados para o Mês do Orgulho LGBTQ+. Em reação ao boicote, a empresa retirou os produtos das lojas, alegando conflitos entre compradores e empregados e a ocorrência de incidentes em que consumidores jogavam os produtos no chão.
‘Práticas justas’
Embora tenham voltado atrás em seus programas DEI, muitas empresas reafirmaram seus compromissos com a diversidade, a equidade e a inclusão em suas atividades. Várias companhias contrataram consultores externos para ajudá-las a gerenciar as suas ações na área. Outras decidiram se concentrar mais na inclusão, que é um ponto visto como ideologicamente “mais neutro”, com o objetivo de promover a integração dos trabalhadores de grupos considerados preteridos no trabalho. Cortaram o “D” e o “E” de DEI, mas preservaram o “I”.
“Nosso comprometimento com as práticas DEI continua no centro do que somos como empresa. Nós continuamos a desenvolver intencionalmente práticas justas e equitativas para estimular o progresso de nosso pessoal e dos nossos produtos, políticas e pilares de nossas parcerias”, afirmou um porta-voz da Meta após o anúncio das recentes medidas de cortes na área de diversidade e inclusão.
A Walmart, que anunciou a revisão de suas políticas DEI em novembro, disse mais ou menos a mesma coisa. “Nós estamos numa viagem e sabemos que não somos perfeitos, mas cada decisão vem de uma determinação de fomentar um senso de pertencimento, abrir portas e oportunidades a todos os nossos funcionários, clientes e fornecedores e de ser uma Walmart para todos”, disse a empresa num comunicado, ao anunciar as mudanças que promoveu.
De qualquer forma, com a revisão ou o cancelamento dos programas identitários por grandes empresas americanas, um “velho” sistema, agora rebatizado de MEI (mérito, excelência e inteligência), vem retomando seu espaço na gestão de pessoal nos Estados Unidos. O MEI, conforme seus entusiastas, resgata, em boa medida, os princípios e os valores que marcaram a história americana e que haviam perdido força nos últimos anos para as práticas DEI.

Como o nome já diz, o MEI privilegia contratações e promoções com base nas qualificações e nas conquistas de cada profissional e adota métricas objetivas de avaliação de performance, para maximizar os resultados. O sistema, segundo seus defensores, se propõe a garantir oportunidades iguais para os funcionários e os candidatos que disputam vagas nas empresas, independentemente de suas características de raça e gênero.
“Um processo de contratação baseado no mérito gera naturalmente uma variedade de experiências, perspectivas e ideias”, afirmou recentemente Alexandr Wang, CEO da Scale AI, que ajudou a popularizar o termo MEI, segundo o The Wall Street Journal, em comentário realizado no site da empresa. “Não há seleção de vencedores e perdedores pelo fato de a pessoa ser da raça ‘certa’ ou ‘errada’, de seu gênero e assim por diante.”
Secretariado de Trump
Apesar das acusações feitas contra Trump por seus adversários em razão de sua agenda anti-DEI, diversos de seus colaboradores do primeiro escalão pertencem a grupos considerados preteridos no trabalho. O secretário de Estado, Marco Rubio, por exemplo, é filho de cubanos. O secretário do Tesouro, Scott Bessent, é o primeiro assumidamente gay a ocupar o cargo. O novo diretor do FBI, Kash Patel, é o primeiro comandante do órgão que vem de uma família de origem indiana. A chefe de gabinete de Trump, Susie Wiles, é uma mulher, a primeira também a ocupar o posto. A procuradora-geral, Pam Bondi, idem. Scott Turner, secretário da Habitação e Desenvolvimento Urbano, é negro.
Como se pode observar, tudo indica que as medidas de Trump, embora restritas ao governo federal dos Estados Unidos e a seus fornecedores, deverão estimular um recuo generalizado das empresas em seus programas DEI. Mas a marcha-à-ré nas ações de diversidade e inclusão empresariais, criadas e implementadas por motivos nobres, vai muito além de Trump e antecede a sua vitória nas eleições de 2024 e a sua posse na Casa Branca, por mais tentador que possa ser, para seus adversários e para seus apoiadores, atribuir a ele tudo o que está acontecendo na área.