Saiba como as bets afetam o trabalho em 5 pontos
A especialista em futuro do trabalho, Maíra Blasi, explica como os jogos de azar impactam o dia a dia de trabalhadores viciados em bets.
O vício em apostas esportivas online custou o equivalente a sete anos da reserva financeira do gestor comercial Gustavo Henrique, 25. O que começou como uma brincadeira se transformou em dependência: ele ite ter fingido trabalhar enquanto apostava pelo celular durante o expediente.
Demitido há menos de um mês, Gustavo agora enfrenta mais de R$ 80 mil em dívidas e uma profusão de incertezas. “Foi a primeira vez que me vi viciado em algo. Não conseguia parar. Corro o risco de ter as contas bloqueadas pelo banco, tenho aluguel para pagar... Não sei como vai ser”, desabafa o gestor.
O profissional é uma das milhares de faces da “epidemia das bets”, termo usado por especialistas para descrever o crescimento desenfreado de pessoas envolvidas em apostas esportivas online.
O fenômeno já representa um problema de larga escala e se manifesta no ambiente de trabalho tanto de formas evidentes quanto por sintomas silenciosos.
No Brasil, 54% dos gestores dizem que os colaboradores aproveitam o horário de descanso, como a pausa do almoço, para apostar. A informação é de uma pesquisa divulgada neste ano pela Creditas Benefícios, em parceria com Wellz by Wellhub e Opinion Box, que ouviu 405 gestores e profissionais de RH.
Sobre os impactos no ambiente de trabalho, 66% apontam que o vício compromete a saúde mental e física dos funcionários. Em seguida, aparecem a queda na produtividade, com 59%, o aumento da rotatividade, 21%, e a piora na reputação da empresa, 16%.

Vício funciona como alcoolismo e uso de drogas
A psicóloga e especialista em liderança, Andréa Krug, explica que o vício em bets funciona no cérebro de forma semelhante ao alcoolismo ou ao uso de drogas: há uma descarga de dopamina que gera gratificação instantânea e cria uma dependência.
Ela explica que o problema é particularmente difícil de identificar e tratar no ambiente de trabalho, pois a mudança de comportamento pode ser confundida com diversos problemas de saúde mental.
Veja alguns sinais abaixo:
- Agitação
- Oscilação de humor
- Queda no rendimento
Os impactos também podem se refletir em sentimento de culpa, vergonha e, em casos extremas, pensamentos suicidas, de acordo com Rui Brandão, CEO da plataforma de saúde mental Zenklub.
No ambiente corporativo, isolamento e conflito são alguns dos efeitos, que podem gerar até demissão.
Jovem perdeu reserva financeira e foi demitido
No caso de Gustavo Henrique, 25, a carreira vinha estável como promotor em uma empresa em Canela, no Rio Grande do Sul. Em 2021, conheceu o universo das apostas esportivas por indicação de um cliente. Começou jogando por diversão e aos poucos aumentou os valores.
Um ano depois, ganhou R$ 90 mil em apenas um mês. Foi o suficiente para pedir demissão em 2022 e tentar viver apenas de apostas. A rotina se resumia a assistir jogos de futebol e basquete para apostar.
Ativo em três plataformas de jogos de azar, costumava apostar em escanteios, número de gols, finalizações ou pontuação de jogadores.
Ganhei muito dinheiro em pouco tempo e achei que seria fácil viver disso.
Gustavo Henrique, gestor comercial
Gustavo conta que participava de grupos no WhatsApp com milhares de apostadores que viviam a mesma rotina. Mas o que parecia ser uma profissão começou a desandar.
Da mesma forma que ganhou dinheiro em pouco tempo, os problemas financeiros escalaram rapidamente. Somente da sua conta bancária, na qual guardava a reserva financeira, chegou a sacar R$ 200 mil. Para tentar reaver o valor, fez empréstimos em bancos e contraiu uma dívida de R$ 80 mil.
Quando percebi, já tinha perdido praticamente tudo. Estava tão desesperado que comecei a apostar cada vez mais alto.
Gustavo Henrique
No começo deste ano, ele conseguiu um emprego, mas não durou: foi demitido por baixo desempenho. “Eu estava tão focado em tentar recuperar dinheiro que não conseguia render.”
Na segunda quinzena de maio, quando conversou com a reportagem, o profissional contou que estava havia quase um mês sem apostar e também vinha publicando vídeos no TikTok para compartilhar sua história.
Recém-contratado por uma corretora, ele concilia a rotina: durante o dia, cumpre expediente e à noite faz lives na plataforma como forma de complementar a renda.
Confira o depoimento:
O apelo das bets está na promessa de dinheiro fácil, rápido e sem a necessidade de esforço, analisa Maíra Blasi, especialista em futuro do trabalho. Ela ressalta que os sites usam estratégias sofisticadas para captar e manter o interesse dos apostadores.
A especialista acrescenta que esse tipo de enriquecimento atinge o imaginário de quem está em busca de uma saída. Por isso, os trabalhadores da base da pirâmide tendem a ser os mais vulneráveis.
“O atendente da loja, o entregador, o pedreiro: eles são os profissionais mais afetados”, afirma.
Trabalhadores do varejo estão entre os mais impactados
Uma balconista de uma farmácia no interior da Bahia, que pediu para não ser identificada, foi demitida há três meses. O motivo: faltas e atrasos recorrentes sem justificativa.
Ela conta que ou a virar madrugadas jogando em sites de aposta. Em um único mês, chegou a faltar seis dias e se atrasar em outros por não conseguir acordar a tempo. Com o vício agravado, em apenas cinco meses, acumulou uma dívida de R$ 7 mil. Atualmente, está desempregada e depende financeiramente do marido.
De acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), cerca de 1,8 milhão de pessoas ficaram inadimplentes ao comprometer a renda com apostas.
O CEO do Assaí, Belmiro Gomes, declarou em abril deste ano que o aumento dos gastos com apostas esportivas tem influenciado famílias a gastarem menos com comida. Segundo o CEO, a análise foi feita a partir de dados da empresa.
Em um vídeo recente, o também fundador e CEO da Havan, Luciano Hang, afirmou estar preocupado com os efeitos das apostas online no mercado. Na ocasião, ele disse que o RH da empresa registrou casos de funcionários com anos de casa pedindo demissão para utilizar o valor da rescisão no pagamento de dívidas relacionadas a apostas.
Diante desse fenômeno, Maíra Blasi aponta duas consequências no mercado de trabalho: o aumento da informalidade e o crescimento dos afastamentos por questões de saúde mental.
A especialista explica que isso acontece porque a informalidade se torna atrativa por permitir ganhos mais rápidos e flexíveis. Por isso, a mudança de renda rápida prometida pelas apostas ou por meio do trabalho informal atrai quem está em uma situação vulnerável.
Para mudar de patamar no trabalho formal, você leva anos. Mas no freela, no bico, ou na bet, cria-se a ilusão de que dá pra conseguir dinheiro rápido.
Maíra Blasi, especialista em futuro do trabalho
Falsa ideia de dinheiro fácil atrai apostadores
Foi com a ambição de melhorar a condição financeira que a gestora logística Raissa Romão, 25, começou a apostar semanalmente. O objetivo era levantar dinheiro para investir na loja de maquiagem de que era dona.
As apostas diárias em plataformas esportivas variavam entre R$ 15 e R$ 50. Em uma semana, chegou a ganhar R$ 1 mil, mas os prejuízos superaram o que havia ganhado.
“Comecei a tentar recuperar o que perdia, e foi aí que perdi tudo”, conta.
Influenciada por pessoas próximas que pareciam lucrar com as apostas, Raissa se envolveu cada vez mais. Em pouco tempo, já não conseguia mais pagar o aluguel do ponto comercial. Nesse período, resolveu pegar empréstimos com agiotas.

Pegava o dinheiro, apostava e perdia tudo de novo. Ele (agiota) ava de segunda a sábado na minha porta para cobrar.
Raissa Romão, gestora logística
Em sete meses, Raissa acumulou dívidas em sete bancos, estourou todos os cartões e precisou contar à família.
Em janeiro de 2022, decidiu fechar a loja por não ter mais condições de arcar com as contas mensais. Desde então, desinstalou os aplicativos de apostas e voltou ao mercado de trabalho formal, no qual segue há três anos.
Qual a responsabilidade das empresas?
Para evitar casos como os ilustrados nesta matéria, as empresas precisam encarar o fenômeno das bets por uma perspectiva mais ampla de responsabilidade social, argumenta Luciana Morilas, professora de direito na FEA-RP/USP (Faculdade de Economia, istração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo).
O trabalhador não deixa de ser cidadão ao entrar na empresa. Ele carrega os impactos da vida cotidiana, do contexto social em que está inserido. E é justamente aí que as apostas entram como um novo fator de adoecimento.
Luciana Morilas, professora de direito na FEA-RP/USP
Apesar da popularização das bets, o Brasil ainda não possui uma lei que regule diretamente o uso de apostas esportivas no ambiente de trabalho.
A regularização das apostas de quota fixa, as bets, foi sancionada em dezembro de 2023, por meio da Lei nº 14.790. No entanto, a norma trata principalmente da tributação e funcionamento do setor, sem abordar condutas relacionadas ao mercado de trabalho.
Com relação a demissões por causa de apostas durante o expediente, a docente frisa que a empresa pode demitir com base em critérios como a quebra de conduta, o impacto no desempenho ou questões disciplinares, desde que respeitados os direitos do trabalhador e o devido processo legal.

Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que as empresas devem adotar uma postura preventiva diante dos impactos das apostas entre colaboradores. As principais recomendações incluem:
- Oferecer apoio psicológico e canais de escuta
- Capacitar líderes para identificar sinais de vício
- Criar políticas internas e ações educativas sobre o tema (canal de educação financeira e rodas de conversa)
- Evitar julgamentos e promover letramento digital
Do ponto de vista da saúde, o CEO da Zenklub, Rui Brandão, ressalta que o vício em apostas é uma forma de sofrimento psíquico e que as empresas devem tratá-lo como qualquer outra questão relacionada à saúde mental.
Maíra Blasi avalia que o poder público é o principal responsável para realizar mudanças efetivas. “O governo precisa criar limites, sem isso, fica difícil”, conclui.
Já para Luciana Morilas, o governo também precisa avançar na criação de leis mais amplas, que contemplem políticas de saúde pública voltadas ao tratamento da dependência, mecanismos de prevenção e normas para proteger trabalhadores afetados.
A reportagem entrou em contato com o Ministério do Trabalho e Emprego para saber se há políticas ou iniciativas voltadas à prevenção ou enfrentamento dos impactos causados pelas apostas online no ambiente de trabalho.
Também questionou possíveis parcerias com outras pastas, como Saúde e Justiça, e se há previsão de fiscalização ou regulamentação específica para o uso dessas plataformas durante o expediente. Até a publicação desta matéria, não houve resposta.