O que estão compartilhando: que venezuelanos entram no Brasil sem documentação e logo recebem um novo documento no País, trazendo problemas de segurança, saúde, educação e infraestrutura para o Estado de Roraima.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Para entrar no Brasil, venezuelanos precisam de um documento de identidade civil emitido em seu país de origem, mesmo para os que pedem residência. No caso daqueles que buscam refúgio, há a possibilidade de entrar no Brasil sem essa documentação, mas esses casos são raros e costumam ocorrer somente com indígenas que já não tinham documentos antes.
O documento para permanência no Brasil não é entregue imediatamente: há um processo logístico até que o Registro Nacional Migratório chegue às mãos do estrangeiro, e isso inclui entrevistas, inclusive, com a Polícia Federal.
Quanto às questões de segurança em Roraima, a Secretaria da Justiça e da Cidadania e Secretaria de Estado da Segurança Pública informaram que a atuação de facções representa uma séria ameaça. Segundo as duas pastas, cerca de 10% da população carcerária de Roraima é formada por venezuelanos, mas o governo não respondeu por quais crimes eles respondem.
Autor do conteúdo investigado, o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) reafirmou, em nota, que “a entrada descontrolada de migrantes pela fronteira com a Venezuela impacta diretamente a segurança, a saúde, a infraestrutura e a organização social do Estado” e acrescentou que “mesmo com os esforços da Operação Acolhida, o controle na fronteira não é absoluto” (leia mais abaixo).

Saiba mais: O vídeo investigado circula no Instagram com imagens de um cemitério clandestino em Boa Vista (RR), descoberto em janeiro deste ano após um homem fugir, segundo contou à polícia, para não ser morto por uma facção venezuelana chamada Tren de Arágua.
Junto com essas imagens, o vídeo exibe uma fala do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), afirmando que o Estado de Roraima está sendo invadido por facções criminosas da Venezuela e que vários cemitérios clandestinos já foram descobertos. O Verifica não encontrou registros de outros cemitérios além do citado em Boa Vista.
Segundo ele, esses venezuelanos entram no Brasil sem se identificar e já recebem documentos brasileiros, mas continuam a agir como faziam em seu país de origem, supostamente causando tumultos e prejudicando o sistema de segurança, saúde, educação e infraestrutura do Estado. Mas na realidade, o processo de obtenção de documentos é mais complexo do que faz parecer o senador.
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Como os venezuelanos entram no Brasil?
Venezuelanos, assim como pessoas naturais de países do Mercosul e associados, não precisam de visto para entrar no Brasil. Eles podem ingressar aqui portando apenas um documento de identidade civil emitido no país de origem e, caso tenham interesse em migrar ou ficar no Brasil na condição de refugiados, devem pedir a regularização da situação e a emissão do Registro Nacional Migratório.
Em 2018, o governo federal criou a Operação Acolhida, com o intuito de garantir o atendimento a migrantes e refugiados venezuelanos que entram no Brasil, principalmente pela fronteira na cidade de Pacaraima (RR).
Em 2019, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela, o que facilitou o reconhecimento da situação de refugiados desses venezuelanos que ingressam no Brasil.
Em 2021, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), uma portaria deu aos venezuelanos duas opções legais de permanência no Brasil:
- A autorização de residência, concedida inicialmente por dois anos, que exige a apresentação de documento de identificação com foto;
- O pedido de reconhecimento da condição de refugiado, que pode ser ado inclusive por pessoas sem documentos.
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), de janeiro de 2017 até fevereiro de 2025, 1,2 milhão de venezuelanos entraram no Brasil e 592 mil deixaram o País, um saldo de 672 mil que permaneceram em território brasileiro.
Através da Operação Acolhida, desde 2018, 172 mil venezuelanos foram acolhidos nos abrigos federais. Atualmente, há 4.860 acolhidos em seis abrigos e um alojamento. A Operação funciona com a recepção dos venezuelanos em Roraima e a realocação voluntária deles para outros Estados brasileiros – um processo conhecido como interiorização.
Quanto aos pedidos formais da condição de refugiado, os números do Migração no Brasil, atualizados em 31 de março deste ano, mostram que, desde 2010, quando os dados começaram a ser coletados, 272 mil venezuelanos fizeram a solicitação. Até março deste ano, 141 mil tiveram a condição de refugiado reconhecida. Apesar de entrarem prioritariamente por Roraima, há venezuelanos acolhidos em todos os Estados brasileiros, exceto no Rio de Janeiro.

Quem não tem documentos consegue entrar no País?
Sim. Existe a possibilidade de pessoas sem documentos entrarem no Brasil. De acordo com representantes do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que tem escritórios na fronteira do Brasil com a Venezuela e que faz o atendimento àqueles que entram no Brasil pelas cidades de Pacaraima e Boa Vista, esses casos são raros.
Eles ocorrem, em média, uma vez por mês. Em geral, essas pessoas sem documento são indígenas, que já não tinham documentos civis antes e, naturalmente, não emitiram uma identidade para tentar refúgio no Brasil.
Nesses casos, os indígenas são entrevistados no posto de triagem com a ajuda de intérpretes na língua materna deles, e informam onde e quando nasceram, os nomes dos pais e outras informações necessárias à emissão de um documento de identidade que seja o mais fiel possível à realidade.
No caso de outros venezuelanos que entram no país sem documentos, é preciso que eles declarem “sob as penas da lei, sua qualificação, mediante preenchimento de termo de responsabilidade”. Omitir ou fazer declarações falsas em documentos oficiais é considerado crime pelo Código Penal Brasileiro, e quem cometer essas faltas, mesmo sendo estrangeiro, responde de acordo com a legislação do Brasil.
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Essa brecha sobre a documentação existe, explica o ACNUR, porque nem sempre a pessoa que está fugindo de um país onde há graves violações de direitos humanos tem como prioridade levar documentos. Ainda assim, a maioria dos venezuelanos que a pela fronteira com o Brasil carrega documentos civis, inclusive porque prioriza o pedido de residência no País, em vez do ingresso como refugiado.
Isso acontece, de acordo com representantes do ACNUR em Roraima, porque há uma crença de que refugiados carregam um estigma. Eles teriam que viver em abrigos sob proteção internacional, teriam mais dificuldade de ingressar no mercado formal de trabalho e sofreriam preconceito no Brasil por conta disso.
Do total de migrantes no Brasil no mercado de trabalho formal, a maioria é de venezuelanos: 18.566 foram itidos em fevereiro deste ano e 14.574 foram demitidos no mesmo mês, um saldo positivo de 3.992.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública confirmou que a maior parte dos venezuelanos opta pela residência. “Mesmo entre aqueles que escolhem a via do refúgio, a grande maioria apresenta documentos de identificação emitidos pelo governo do país de origem, no caso, a Venezuela”, disse o MJSP, em nota.

Como funciona o processo de emissão de documentos para venezuelanos?
Diferentemente do que o vídeo pode dar a entender, não costuma ser de interesse da maior parte dos venezuelanos que entra no Brasil vir para o país sem documentos. Isso porque eles precisam disso para questões básicas, como abertura de conta bancária, compra de chip de celular, contrato formal de trabalho. E, a forma mais rápida de ter esses documentos emitidos é entrar no Brasil portando um documento do país de origem.
Logo após cruzar a fronteira, eles são recebidos no Posto de Interiorização e Triagem da Operação Acolhida, onde ficam funcionários do ACNUR. Lá, os venezuelanos são vacinados e recebem um cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), antes do início do processo de emissão dos documentos.
Aqueles que entram no país com um documento de identificação civil da Venezuela são identificados no posto de triagem – onde há um sistema de biometria – e entrevistados. Segundo o ACNUR, a entrevista inclui perguntas sobre origem, núcleo familiar e se a pessoa deixou parentes na Venezuela. Eles também são questionados sobre já terem sido detidos, processados, julgados ou condenados em algum inquérito policial.
Após ar pelo posto de triagem com o ACNUR, eles são encaminhados ao posto da Polícia Federal, que também faz um processo de identificação com biometria e novas entrevistas. De acordo com o MJSP, além dos processos de identificação biométrica e biográfica, é feita uma verificação de alertas de segurança.
Depois disso, eles recebem um Protocolo de Solicitação de Refúgio, onde consta o nome completo, foto, número da lei que assegura o refúgio, data de nascimento, validade do protocolo, gênero, país de nascimento e filiação.
Esse protocolo tem validade de três meses, que é o tempo para a confecção do Documento Provisório de Registro Nacional Migratório, emitido pela Polícia Federal. Ele contém os mesmos dados, além da impressão digital e número do Registro Nacional Migratório. Esta cédula é vermelha e tem a palavra “provisório” inscrita na lateral direita. O portador precisa renová-lo a cada dois anos, ou até ter o pedido de refúgio ou residência aprovado e receber uma nova carteira, definitiva, na cor azul, com validade de nove anos.

Violência aumentou com a presença de migrantes?
No vídeo, o senador Mecias de Jesus diz que Roraima está invadida por “várias facções venezuelanas” e que já foram descobertos “vários cemitérios clandestinos”.
O Verifica questionou o governo de Roraima sobre as declarações do senador e, em nota, a Secretaria da Justiça e da Cidadania de Roraima e Secretaria de Estado da Segurança Pública informaram que “a atuação de facções criminosas ainda representa uma séria ameaça à segurança pública em um âmbito geral”.
As pastas não especificaram quais facções venezuelanas atuam em Roraima, nem quantas, mas é de amplo conhecimento a presença no Estado da facção Tren de Arágua, aliada do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC).
“Estes grupos criminosos têm disputado territórios estratégicos para o tráfico de drogas, gerando conflitos que resultam em danos físicos, prejuízos materiais e impactos sociais significativos para a população local”, diz a nota conjunta.
O Verifica não encontrou registros de que esta ou outras facções criminosas mantenham “cemitérios clandestinos”, no plural, no Estado de Roraima. Em janeiro deste ano, a Polícia Civil localizou um cemitério clandestino no bairro de Pricumã, na capital Boa Vista, onde estavam enterrados nove corpos.
O cemitério foi localizado após um homem invadir casas e a polícia ser chamada por moradores, que acreditaram que ele pretendia roubar os imóveis. O homem disse que estava fugindo para não ser morto por traficantes do Tren de Arágua, que tinham sequestrado sua família. Ele apontou a localização dos corpos.
O governo de Roraima foi questionado sobre a população carcerária de venezuelanos no Estado, sobre os crimes cometidos por eles e eventuais operações que buscavam prendê-los. Em nota conjunta, as secretarias de Segurança e de Justiça informaram que venezuelanos representam cerca de 10% da população carcerária de Roraima hoje – são 409 pessoas. Os crimes cometidos por eles não foram informados.
O ACNUR ressalta que, além de direitos, os estrangeiros que vivem no Brasil também têm deveres, como seguir as leis brasileiras. A única diferença entre um residente e um refugiado é que o segundo não pode ser devolvido ao país de origem, a menos que cometa um crime que ameace a segurança nacional do Brasil.
O outro lado
Em nota enviada ao Verifica, o senador Mecias de Jesus reafirmou a alegação no vídeo viral, de que há uma entrada descontrolada de migrantes venezuelanos na fronteira do Brasil com a Venezuela, em Roraima, e que isso tem causado impactos diretamente na segurança, saúde, infraestrutura e organização social do Estado.
Segundo ele, entre 2016 e 2025, houve um aumento de 1.850% no número de venezuelanos presos em Roraima – saltou de 30 para 586. Os números foram atribuídos pelo senador à Secretaria Estadual de Segurança Pública. Ele também informou que há 232 foragidos e que “as autoridades já reconheceram a infiltração de criminosos”. O Verifica não conseguiu confirmar esses números.
Para o senador, os esforços da Operação Acolhida não garantem um controle absoluto na fronteira e muitos venezuelanos entram no Brasil por Pacaraima usando rotas clandestinas, conhecidas como trochas, e isso demonstra a “fragilidade da fiscalização”.
“A imigração crescente de venezuelanos tem se tornado uma crise econômica, social, de saúde e segurança para Roraima. A Justiça já determinou que o governo federal ressarcisse o Estado por metade dos gastos — mas até agora, nada foi pago. O valor ainda está em disputa, e o próprio STF está intermediando uma conciliação. Roraima não pode continuar arcando sozinha com um problema nacional”, diz a nota.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para que a União transferisse recursos a Roraima para ressarcir metade dos gastos com venezuelanos que vivem no Estado foi tomada em outubro de 2020. No entanto, não houve um consenso sobre a metodologia de cálculo do valor final a ser destinado a Roraima.
Segundo o STF, após o fim do prazo para recursos, as partes pediram que o caso fosse encaminhado à Câmara de Conciliação e Arbitragem da istração Federal (CCAF), mas também não houve acordo. O ministro Luiz Fux, então, determinou uma perícia do Tribunal de Contas da União (TCU) e, no dia 1º de abril deste ano, suspendeu a tramitação da ação por 60 dias para que as partes continuem tentando chegar a um consenso.
“Reconhecemos o esforço dos militares, da Polícia Federal e das agências envolvidas. Mas é preciso encarar os fatos: existe um descomo entre o fluxo migratório e a capacidade de resposta”, conclui o senador.