Por anos, segundo uma investigação do jornal americano The New York Times, a Rússia usou o Brasil como ponto de partida para a elite de seus oficiais de inteligência, os chamados “ilegais”.
Em uma operação audaciosa e abrangente, esses espiões apagaram os rastros de seu ado russo. Abriram empresas, fizeram amigos, viveram romances — experiências que, com o tempo, se tornaram os alicerces de identidades inteiramente novas.
Nos últimos três anos, agentes da contra-inteligência brasileira investigaram esses espiões de forma silenciosa e metódica. Com um trabalho minucioso, descobriram um padrão que permitiu identificá-los, um a um.

Os agentes identificaram ao menos nove oficiais russos com identidades brasileiras, segundo documentos e entrevistas. Até hoje, seis deles eram conhecidos apenas pela polícia. A investigação já alcançou ao menos oito países, com o apoio de serviços de inteligência dos Estados Unidos, Israel, Holanda, Uruguai e outros aliados ocidentais.
Com base em centenas de documentos confidenciais e dezenas de entrevistas com policiais e agentes de inteligência em três continentes, o Times apurou os bastidores da espionagem russa no Brasil e da ofensiva silenciosa para desmantelá-la.
Como a Rússia transformou o Brasil numa fábrica de espiões
Segundo investigação do New York Times, Putin usou o Brasil como ponto de partida para a elite de seus oficiais de inteligência, os chamados “ilegais”.
Desmontar a fábrica de espiões do Kremlin foi mais do que uma operação de rotina. Foi uma resposta aos prejuízos causados por uma década de ofensiva russa. Espiões russos ajudaram a derrubar um avião que decolou de Amsterdã em 2014, interferiram em eleições nos Estados Unidos, na França e em outros países, envenenaram adversários e planejaram golpes de Estado.
Mas foi a decisão do presidente Vladimir Putin de invadir a Ucrânia, em fevereiro de 2022, que desencadeou uma reação global contra espiões russos, até mesmo em locais onde, por anos, eles atuaram com relativa impunidade. Entre esses lugares está o Brasil, que historicamente manteve relações amistosas com a Rússia.

A investigação brasileira deu um golpe certeiro no programa de “ilegais” de Moscou. Desmantelou um grupo de agentes altamente treinados e difíceis de substituir. Ao menos dois foram presos; outros bateram em retirada para a Rússia. Com as identidades expostas, é improvável que voltem a atuar no exterior.
À frente dessa derrota extraordinária esteve a equipe de contrainteligência da Polícia Federal brasileira, a mesma que investigou o ex-presidente Jair Bolsonaro por planejar um golpe.
De sua moderna sede envidraçada em Brasília, a equipe ou anos vasculhando milhões de registros de identidade em busca de padrões.
A investigação ficou conhecida como Operação Leste.

Fantasmas no Sistema
Em abril de 2022, poucos meses após a invasão russa da Ucrânia, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA, na sigla em inglês) enviou uma mensagem urgente e inesperada à Polícia Federal brasileira.
Os americanos alertaram que um agente da inteligência militar russa havia aplicado para um estágio no Tribunal Penal Internacional na Holanda, justamente quando o órgão começava a investigar os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia.
O candidato a estagiário viajava com um aporte brasileiro em nome de Victor Muller Ferreira. Com essa identidade, concluiu uma pós-graduação na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Mas, segundo a CIA, seu nome verdadeiro era Sergey Cherkasov. Barrado pela imigração holandesa, ele seguia em um voo com destino a São Paulo.
Com poucas evidências e apenas algumas horas para agir, os oficiais brasileiros não tinham base legal para prender Cherkasov no aeroporto. Por isso, durante dias de tensão, ele foi monitorado de perto enquanto se hospedava em um hotel em São Paulo.

Por fim, os policiais obtiveram um mandado e prenderam Cherkasov — não por espionagem, mas por uma acusação mais modesta: uso de documentos falsos.
Até isso se mostrou mais complicado do que imaginavam. Durante o interrogatório, Cherkasov manteve uma postura arrogante e insistiu que era brasileiro. E ele tinha documentos para sustentar sua versão.
Seu aporte azul era idêntico ao de qualquer brasileiro. Ele tinha título de eleitor, como exige a lei, e até um certificado de conclusão do serviço militar obrigatório.
Todos os documentos eram autênticos. “Não havia qualquer ligação entre ele e a ‘grande mãe’ Rússia”, disse um policial federal, que falou sob condição de anonimato, como os demais, já que a investigação está em andamento.
Apenas quando a polícia encontrou sua certidão de nascimento é que a história de Cherkasov e toda a operação russa no Brasil começaram a desmoronar.
No ado, espiões russos costumavam obter documentos usando nomes de pessoas mortas, muitas vezes bebês.
Desta vez, foi diferente. Os agentes confirmaram que Victor Muller Ferreira nunca existiu, embora ele tivesse uma certidão de nascimento autêntica.

O documento indicava que ele havia nascido no Rio de Janeiro, em 1989, filho de uma brasileira real, que morreu quatro anos depois.
Mas, ao localizar a família da mulher, os agentes descobriram que ela nunca teve filhos. Também não havia nenhum registro de alguém com o nome do suposto pai.
A descoberta acendeu um alerta. Como um espião russo conseguiu documentos autênticos com um nome falso? E, mais importante, se um fez isso, o que impediria outros de fazerem o mesmo?
Os agentes federais aram a procurar o que chamaram de “fantasmas”: pessoas com certidões de nascimento legítimas, mas sem nenhum histórico no Brasil. Elas apareciam já adultas e rapidamente conseguiam documentos de identidade.
Para localizar esses fantasmas, os agentes buscaram padrões em milhões de registros de nascimento, aportes, carteiras de motorista e números da previdência social.

Parte do trabalho foi automatizado, mas muitos bancos de dados no Brasil não são integrados nem digitalizados. Por isso, boa parte da investigação precisou ser feita manualmente.
A análise levou a Operação Leste a desvendar a ofensiva russa.
“Tudo começou com Sergei”, disse um alto funcionário brasileiro.
Agentes Especiais de Putin
Todo espião, independentemente do país que represente, enfrenta o mesmo desafio: criar uma identidade falsa que resista a um escrutínio minucioso.
Por gerações, agentes secretos usaram aportes falsos, identidades roubadas e histórias cuidadosamente construídas. Com a era digital, em que quase tudo deixa rastros online, esse trabalho se tornou muito mais difícil.
Esse é um desafio especialmente sério para a Rússia. Embora todos os serviços de espionagem usem agentes secretos, a maioria depende de redes de informantes locais para fazer a coleta pesada de informações.
A Rússia é uma exceção. Desde o início da União Soviética, alguns agentes infiltrados se comprometeram com uma vida inteira de serviço sob identidades falsas.
O próprio Putin itiu ter supervisionado espiões soviéticos enquanto servia como um jovem oficial da KGB na Alemanha Oriental, no fim da Guerra Fria.

“Essas são pessoas especiais, de qualidade especial, convicções e caráter especiais”, disse Putin em uma entrevista televisionada em 2017. “Deixar a própria vida para trás, abandonar os entes queridos, a família, o país, por muitos e muitos anos, para dedicar a vida ao serviço da pátria, não é algo que qualquer um consiga fazer. Somente os escolhidos podem fazer isso, e digo isso sem nenhum exagero”.
O Brasil parecia o lugar ideal para os espiões escolhidos por Putin construírem suas identidades. O aporte brasileiro é um dos mais úteis do mundo, permitindo viajar sem visto para quase tantos países quanto o americano. Em uma nação tão multiétnica, é pouco provável que alguém com traços europeus e leve sotaque desperte suspeitas.
Embora vários países exijam comprovação médica para emitir certidões de nascimento, o Brasil faz uma exceção para nascidos em áreas rurais. Nesses casos, autoridades emitem o documento a quem declarar, na presença de duas testemunhas, que o bebê é filho de pelo menos um dos pais brasileiros.
O sistema também é descentralizado e vulnerável à corrupção local. Com a certidão de nascimento em mãos, basta solicitar o título eleitoral, os documentos militares e, por fim, o aporte.
A partir daí, o espião pode viajar para quase qualquer lugar do mundo.
Saiba mais
A Pista Decisiva
Um dos primeiros nomes a chamar a atenção dos investigadores foi Gerhard Daniel Campos Wittich. A certidão indicava seu nascimento no Rio de Janeiro em 1986, mas ele teria surgido do nada em 2015.
Quando os agentes começaram a investigá-lo, Shmyrev tinha criado uma identidade tão convincente que nem a namorada nem os colegas desconfiavam dele. Falava português perfeitamente e atribuía o leve sotaque à infância ada na Áustria.
Ele parecia totalmente dedicado à 3D Rio, empresa que criou do zero e pela qual demonstrava verdadeiro envolvimento, segundo ex-colegas. ava horas no 16º andar de um arranha-céu no centro do Rio, a um quarteirão do Consulado dos Estados Unidos. Às vezes, dispensava os funcionários para trabalhar sozinho.

“Ele era viciado em trabalho”, disse Felipe Martinez, ex-cliente e amigo do russo conhecido como Daniel. “Ele pensava grande, sabe?”
A empresa despontou, segundo um ex-funcionário, conquistando clientes como a Rede Globo e o Exército brasileiro. (O funcionário, que pediu anonimato, afirmou que Shmyrev nunca foi convidado a entrar em uma base militar).
Apesar disso, amigos e colegas notavam que ele tinha peculiaridades. Ele jamais deixava o computador conectado à internet quando não o estava usando. Além disso, parecia dispor de mais dinheiro do que sua empresa poderia justificar.
Shmyrev fez viagens repentinas à Europa e à Ásia. Brincava dizendo que fazia “espionagem industrial” contra concorrentes. Às vezes, se ava por cliente dessas empresas e chegou a enviar um funcionário para estagiar em uma rival e rear informações.
Ele também parecia ter pavor de câmeras e evitava ser fotografado. Um ex-funcionário chegou a brincar que ele poderia ser “procurado pela Polícia Federal”.

Shmyrev entrou em pânico quando um jornal local publicou sua foto ao lado do prefeito do Rio na inauguração de um centro de tecnologia, lembrou Martinez.
Mas, segundo os amigos, tudo isso só fez sentido em retrospecto.
No íntimo, Shmyrev se sentia entediado e frustrado com a vida de agente secreto.
“Nenhuma realização concreta no trabalho”, escreveu Shmyrev em uma mensagem de texto para a esposa. “Já faz dois anos que não estou onde deveria estar”.
Sua esposa, Irina Shmyreva, também espiã russa e então vivendo do outro lado do mundo, na Grécia, não foi compreensiva. “Se você queria uma vida familiar normal, então fez uma escolha fundamentalmente errada”, respondeu.
Mas ela reconheceu que a vida que levavam estava longe do que imaginavam. “Sim, não é como foi prometido, e é ruim”, escreveu ela. “Eles basicamente enganam as pessoas para entrarem nisso, e vejo isso como algo ruim. É desonesto e nada construtivo”.
As mensagens de texto fazem parte de um dossiê compartilhado com serviços de inteligência estrangeiros e ado pelo Times. Elas foram enviadas em agosto de 2021 e recuperadas posteriormente do telefone de Shmyrev.

Seis meses após o envio das mensagens, a Rússia invadiu a Ucrânia. De repente, serviços de inteligência em todo o mundo aram a agir juntos, priorizando a interrupção da espionagem do Kremlin. A vida dos espiões russos no exterior virou de cabeça para baixo.
Primeiro veio Cherkasov, o estagiário preso semanas após a invasão. Depois, Mikhail Mikushin, investigado no Brasil e detido ao aparecer na Noruega. Dois espiões russos foram presos na Eslovênia, onde viviam sob identidades falsas de argentinos.
No fim de 2022, os investigadores brasileiros se aproximavam de Shmyrev.
Os agentes federais haviam desmontado a identidade de Gerhard Daniel Campos Wittich, além de descobrir que a mulher registrada como mãe estava morta e nunca teve um filho com esse nome. O pai não foi localizado.
No fim de dezembro, os agentes tinham quase certeza de que haviam descoberto um espião russo infiltrado.
Se Shmyrev estava apreensivo, não demonstrava. Em uma tarde de dezembro, almoçou com um colega no movimentado bairro de Botafogo no Rio de Janeiro. Parecia tranquilo e disse que estava prestes a embarcar em uma viagem de um mês à Malásia, segundo um funcionário que falou sob condição de anonimato.

Ele deixou o país poucos dias antes de a Polícia Federal desvendar sua identidade. Os agentes ficaram incrédulos: depois de tanto esforço, ele escapou.
Shmyrev tinha uma agem de volta marcada para 2 de fevereiro de 2023. Os agentes então conseguiram mandados de prisão e ordens de busca para seus endereços. Quando ele aterrissasse de volta no Brasil, estariam prontos para agir.
Mas ele nunca mais voltou.
*Rodrigo Pedroso colaborou com a reportagem, de São Paulo.