O rei Charles III voou de helicóptero para o HMS Prince of Wales, que navegava no Canal da Mancha, na terça-feira, onde interagiu com marinheiros e observou caças de combate decolar do convés do navio, um porta-aviões da Marinha Real. Talvez uma escapada bem-vinda de sua repentinamente complicada vida social. Em cinco dias, Charles convidou o presidente Donald Trump para uma rara segunda visita de Estado ao Reino Unido e logo após recebeu dois dos maiores antagonistas de Trump, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, em sua casa de campo a nordeste de Londres.

Nenhum desses gestos de Charles foi abertamente político. Como de costume na monarquia constitucional britânica, o rei agiu a mando do governo. Esses gestos, no entanto, envolveram o monarca de 76 anos em um turbulento drama diplomático e de uma forma quase inédita para um soberano britânico.
O convite de Charles a Trump, entregue com muito estardalhaço pelo primeiro-ministro Keir Starmer, na quinta-feira, no Salão Oval, ficou ainda mais controvertido após o presidente entrar em choque com Zelenski em relação ao apoio americano à Ucrânia, no dia seguinte à sua audiência mais harmoniosa com Starmer.
“Parem agora a visita de Estado do ‘valentão’ Trump”, proclamou o tabloide de direita The Mail on Sunday em sua primeira página. O jornal citou um coro de exigências de legisladores e outros críticos para que o governo retire o convite a Trump para transmitir o descontentamento do Reino Unido com o presidente e a solidariedade britânica com a Ucrânia.
Simbolicamente, Charles pode ter feito a segunda melhor coisa: recebeu Zelenski na Casa Sandringham após o presidente comparecer a uma reunião de cúpula dedicada à Ucrânia, no domingo. O Palácio de Buckingham não revelou o teor da conversa, mas informou que Zelenski foi “recebido calorosamente” por Charles, que lhe serviu chá no salão de Sandringham.

Para os críticos de Trump, a cereja do bolo veio na segunda-feira, quando Trudeau, cujo país está na mira das tarifas dos Estados Unidos e que Trump afirma querer anexar e transformar no 51.º Estado americano, peregrinou a Sandringham para se encontrar com Charles. O rei, evidentemente, é chefe de Estado cerimonial também do Canadá.
Trudeau afirmou numa postagem em redes sociais que eles discutiram “questões importantes para os canadenses — incluindo, acima de tudo, o futuro soberano e independente do Canadá”. Charles, porém, permaneceu em silêncio, o que frustrou alguns políticos canadenses, que argumentaram que o rei deveria ter reafirmado publicamente a soberania do Canadá. Dado seu papel apolítico, isso não aconteceria. Mas o simbolismo do soberano sorrindo enquanto cumprimentava um primeiro-ministro que Trump chama de governador não ou despercebido de nenhuma maneira.
“Foi uma semana realmente interessante na diplomacia britânica e real”, afirmou o historiador da realeza Ed Owens. “Comentou-se como esta família real virou uma arma secreta da diplomacia britânica. Vimos Keir Starmer usando o rei e a monarquia desse modo em suas interações com Trump.”
Owens disse que a consolidada afeição de Trump pelo rei e pela família real é um elemento intangível capaz de influenciar o presidente americano quando ele conversar com o Reino Unido sobre a Ucrânia. Starmer se posicionou como uma ponte entre Europa e EUA sobre o assunto. E o presidente ficou nitidamente encantado com o convite de Charles.
“Um homem lindo, um homem maravilhoso”, disse sobre o rei um radiante Trump durante o encontro com Starmer, na mesma cadeira na qual, 24 horas depois, repreendeu Zelenski, dizendo ao presidente ucraniano: “Não nos diga o que vamos sentir. Você não está em posição de ditar isso”.
O Palácio de Buckingham recusou-se a comentar o status do convite a Trump, observando que o governo é responsável por questões desse tipo. Starmer ignorou pedidos para que a visita de Estado seja cancelada e afirmou no domingo, em uma entrevista à BBC, que os críticos estavam “tentando intensificar a retórica sem considerar realmente a coisa mais importante em jogo aqui — nós estamos falando sobre a paz na Europa”.

Duas fontes com conhecimento sobre os assuntos do palácio disseram ser altamente improvável que o convite seja retirado, dada a indisposição que um ato dessa natureza geraria com a Casa Branca — embora o desafio de combinar os calendários de dois chefes de Estado possa significar que a visita demore meses para ocorrer, acrescentaram.
Em sua carta-convite, o rei deu a ideia de primeiramente se encontrar com Trump na Escócia, onde o presidente tem o clube de golfe Trump Turnberry e Charles, o Castelo de Balmoral, para combinar a visita de Estado num momento posterior. O encontro na Escócia seria mais informal, sem a guarda de honra nem o banquete luxuoso no Palácio de Buckingham de que Trump desfrutou em sua última visita de Estado, em 2019.
“A ideia de (a visita de Estado) ser adiada indefinidamente, até que um acordo de paz seja alcançado em termos aceitáveis para a Ucrânia e a Europa, é interessante”, afirmou Owens, acrescentando que a família real “conseguiu para o Reino Unido um peso nessas negociações que o país, de outra forma, não teria”.
Apesar de toda a sua aquiescência em relação ao papel apolítico do rei, Charles é conhecido por ser mais consciente politicamente e opinativo do que sua finada mãe, a rainha Elizabeth II. No início de seu reinado, ele foi criticado por receber a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no Castelo de Windsor, depois que ela firmou um acordo sobre a Irlanda do Norte com o então primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak.
Os críticos consideraram isso um imprimátur real sobre o acordo do governo. Disseram que Charles, cujo apoio à União Europeia é bem documentado, tinha se permitido ser usado por Downing Street.
O rei tem demonstrado seu apoio à Ucrânia emitindo comunicados e fazendo visitas regulares a organizações que assistem refugiados da guerra. No início do conflito, quando ainda era príncipe de Gales, Charles visitou um grupo em Londres e falou com uma família que tinha sido retirada de Kharkiv, no leste da Ucrânia.
“Então, qual vocês acham que é o objetivo dos russos?”, Charles lhes perguntou. “Remover pessoas?”
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Dados os fortes sentimentos do monarca e a delicadeza do momento, observadores da realeza disseram que o governo deveria ter cuidado para não estender demais o que até agora tem sido um papel benéfico. O valor do rei enquanto agente do “poder brando” do Reino Unido, dizem eles, reside no monarca estar acima da política.
Até mesmo sua visita planejada faz tempo ao porta-aviões teve simbolismo, dada a promessa britânica de enviar soldados para uma força de manutenção da paz para a Ucrânia. O HMS Prince of Wales realiza exercícios antes de ser enviado para uma missão de oito meses na Ásia.
Falando aos membros da tripulação trajando seu uniforme cerimonial, Charles poderia estar se dirigindo a Starmer, um primeiro-ministro relativamente novo, que tem lutado para acalmar a tempestade entre Ucrânia e EUA. “Seu acionamento, no próximo mês, ocorre em meio a novos desafios em um mundo em constante mudança e mais imprevisível”, disse o rei. “A missão sem dúvida exigirá tenacidade e determinação tanto no mar quanto daqueles que você deixam para trás em suas casas.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO