
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, surpreendeu a todos na terça-feira, 4, com a declaração de que Washington poderia “assumir o controle” da Faixa de Gaza e transformar o enclave palestino na “Riviera do Oriente Médio”.
Ao lado do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, o republicano sinalizou de forma vaga como seria o seu plano para Gaza, mas ressaltou que países como Jordânia e Egito poderiam acolher os 2 milhões de palestinos que vivem no enclave durante uma eventual reconstrução do território, uma ideia rejeitada por ambos.
Para Hussein Ibish, analista sênior do Instituto do Golfo Árabe em Washington, as ideias de Trump mostram que o presidente americano olha para o conflito entre israelenses e palestinos como um negócio imobiliário. “Trump enxerga Gaza como se fosse uma propriedade que precisa ser desenvolvida e para isso os moradores precisam ser removidos”, afirmou o especialista, em entrevista ao Estadão.

Segundo o analista, a proposta de deslocar palestinos para países próximos é “completamente fora da realidade” e um pesadelo logístico. “Mesmo que isso seja cogitado, é preciso entender como esses palestinos chegariam na Jordânia. Como milhares de palestinos chegariam lá, especialmente se eles não quiserem ir”.
Ibish também aponta que o grupo terrorista Hamas deseja o fim da guerra em Gaza. De acordo com o especialista, a queda do regime de Bashar Assad na Síria concretizou uma mudança de poder dentro do grupo terrorista para o gabinete político, que quer focar na reconstrução da Faixa de Gaza.
“A ala militar do Hamas contava que teria uma vasta rede de aliados pró-Irã na região que poderiam ajudá-los ao longo da guerra, mas tudo isso ficou em ruínas. Agora, o poder está nas mãos da ala política, mais ligada ao Catar e a Turquia”, avalia o especialista.
Confira trechos da entrevista:
Na sua avaliação, a primeira fase do cessar-fogo vai continuar vigente até o final?
A primeira fase deve ser completada, com alguns problemas, acusações e provocações que devem acontecer e aconteceriam de qualquer forma. Os líderes dos dois lados precisam ter uma tolerância para provocações.
Em todas as fases vão acontecer certas coisas que um dos lados não vai gostar, pode ser algo relacionado aos termos do cessar-fogo ou as posições das tropas israelenses na Faixa de Gaza, mas o Hamas parece estar comprometido com o cessar-fogo.
O Hamas provavelmente quer continuar o acordo para a segunda fase da trégua, mas a pergunta é se Israel quer que isso aconteça. Os israelenses apenas disseram estar comprometidos com a primeira fase. Não sabemos sobre a segunda fase, apesar de uma forte pressão de Donald Trump.

Na sua avaliação, o governo Trump quer mesmo acabar com a guerra?
Não acho que Trump se importe muito. Ele quer poder dizer que a guerra acabou sob sua supervisão e não no governo de Joe Biden, que fez todo o trabalho de negociação. Ele tem uma chance de fazer isso.
O que ele não quer é que a guerra em Gaza continue como uma grande dor de cabeça para ele. Não acho que ele se importaria se fosse uma guerra menor, sem muito alarde. Mas se o conflito se transformar em uma enorme guerra que limite as suas opções no Oriente Médio, ele vai ficar bem irritado.
Como o senhor avalia a proposta do governo republicano de que países como Egito e Jordânia poderiam receber palestinos durante uma eventual reconstrução de Gaza?
É uma proposta ridícula e mostra como Trump tem uma visão completamente fora da realidade. Mesmo que isso seja cogitado, é preciso entender como esses palestinos chegariam na Jordânia. Como milhares de palestinos chegariam lá, especialmente se eles não quiserem ir.
E os palestinos não querem ir. Trump não consultou ninguém antes de sugerir isso.

Trump está olhando para o conflito entre israelenses e palestinos como se fosse um negócio imobiliário. Ele olha para Gaza como se fosse uma propriedade que precisa ser desenvolvida e para isso os moradores precisam ser removidos.
Dois milhões de palestinos se tornariam refugiados novamente. Hoje em dia, a maioria dos palestinos de Gaza são os filhos e netos dos palestinos expulsos do que hoje é o sul de Israel. O único lugar para eles irem de forma temporária seria o Egito, porque é só cruzar a fronteira com Gaza, mas isso não vai acontecer. Os egípcios são contra. Eles não vão abandonar esta política.
Os Estados Unidos poderiam tentar convencer o Egito de mudar essa política, mas Cairo iria cobrar um preço muito alto. De qualquer jeito, esta sugestão mostra como Trump enxerga este conflito.
Quem poderia governar a Faixa de Gaza depois da guerra?
Existem três opções.
Uma delas é um controle militar direto de Israel, opção que os israelenses não querem. A ala militar do Hamas que realizou os ataques de 7 de outubro de 2023 queria isso para poder realizar uma insurgência.
A segunda opção é o próprio Hamas. É isso que está acontecendo. Com o cessar-fogo, os israelenses não estão nas zonas mais populosas e o Hamas voltou e tomou o controle do enclave.

A terceira opção seria uma autoridade civil istrativa palestina, que faria parte da Autoridade Palestina. Os israelenses não querem a Autoridade Palestina em Gaza e preferem que o Hamas continue governando o enclave palestino. Israel tem mais medo da Autoridade Palestina do que do Hamas.
Tel-Aviv tem mais medo dos palestinos que querem conversar com eles do que dos que querem matá-los. Os palestinos que estão dispostos a conversar com os israelenses podem criar um Estado e a prevenção de um Estado palestino é uma meta de Israel.
Essa é a meta do atual governo israelense e de qualquer outro governo israelense plausível de oposição neste momento.
Então, se um cessar-fogo levar a uma paz mais duradoura em Gaza, o Hamas continuará no poder. E isso vai acontecer porque eles preferem isso do que colaborar com os palestinos que querem viver em paz com o país.
Eles não item isso publicamente, mas é a verdade. Israel precisaria discutir uma alternativa, mas se recusa a discutir. A pior coisa para o governo israelense não é um 7 de outubro, ou 200 ataques iguais a esse, mas sim a criação de um Estado palestino

Na sua avaliação, o Hamas quer acabar com a guerra?
As Brigadas al-Qassam, a ala militar do Hamas, realizaram os ataques de 7 de outubro de 2023. O líder político era Yahya Sinwar, que está morto, o comandante militar era Mohammed Deif, que está morto, e o integrante do gabinete político que mais concordava com a ala militar era Saleh al-Harouri, que também foi morto por Israel.
Os maiores apoiadores desta ala militar são o Irã e o Hezbollah. Esta ala queria uma guerra regional, mas isso não aconteceu. Contudo, eles contavam com uma atmosfera de apoio regional contra Israel, eles desejavam ter o apoio de uma rede de grupos pró-Irã na região que seria liderada pelo Hezbollah.
Esta rede contaria com Irã, Hezbollah, milícias no Iraque, os Houthis no Iêmen e o governo Assad na Síria. Todos esses grupos apoiariam o Hamas e forneceriam e durante todo o processo até o grupo atingir sua meta.
E é preciso entender que a meta é tomar controle do movimento nacional palestino. O Hamas foi fundado em 1987, durante a primeira intifada. Existia um vácuo na liderança dentro da Cisjordânia e a Organização para Libertação da Palestina (OLP) estava no exílio, em Túnis.
O Hamas queria que o movimento nacional se tornasse um movimento islamista liderado por eles, contra a ideia secular proposta pela Autoridade Palestina. O Hamas não conseguiu atingir esta meta, o Fatah, partido que controla a Autoridade Palestina, segue sendo o porta-voz dos palestinos diplomaticamente.
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O Hamas esperava que a guerra contra Israel poderia fazer com que eles se tornassem os porta-vozes do movimento nacional palestino, mas a vasta rede pró-Irã no Oriente Médio simplesmente colapsou. O Irã está enfraquecido, o Hezbollah está tentando se reorganizar e o regime de Assad caiu na Síria.
Neste contexto, o Catar e a Turquia aumentaram a sua influência sobre o grupo. Os rebeldes financiados pelos turcos chegaram ao poder na Síria e o poder mudou de lugar dentro do Hamas. O gabinete político ganhou mais força e as forças militares do Hamas que realizaram os ataques de 7 de outubro perderam prestígio.
A maior carta na manga das Brigadas Al-Qassam eram os laços com o Hezbollah e o Irã e agora isso importa menos. Os líderes políticos do Hamas, que moravam no Catar e agora moram na Turquia, têm como principal carta os laços financeiros e diplomáticos com Doha e Ancara.
Então agora o Hamas não quer mais uma guerra permanente com Israel, mas sim garantir a reconstrução de Gaza e o reestabelecimento do poder do grupo no enclave palestino.
A liderança que realmente está no poder no Hamas quer que a guerra acabe. Eu não achei que isso fosse verdade até a queda do regime de Assad na Síria, mas esta é a realidade.