É por demais conhecida a estratégia adotada historicamente por governos em crise política para reconquistar o apoio popular: escolher um inimigo externo e inventar uma guerra. Assim fez a Argentina com as Malvinas, no início dos anos 1980; assim também faz a Venezuela, com o caso do Essequibo, na Guiana. Trata-se de uma estratégia de mobilizar uma nação pelo medo, confiando-se na capacidade de união que os traumas compartilhados tendem a gerar.
O tarifaço adotado pelo presidente norte-americano, Donald Trump, tem produzido efeitos que levam a esse tipo de mobilização, mesmo que involuntária, em muitos países nos dias de hoje. Governos em crise e sociedades fraturadas pelo fenômeno da polarização parecem ter encontrado, por fim, um motivo para pensar em união: o medo de ameaças externas se concretizarem em impactos deletérios às suas soberanias.
A recente aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 2.088/2023, que cria a chamada Lei de Reciprocidade Comercial, parece ser um exemplo disso no Brasil. O projeto tem como objetivo regular a adoção de barreiras comerciais recíprocas a outros países ou blocos que pratiquem algum tipo de restrição à importação de produtos brasileiros. Trata-se de uma resposta a dois movimentos internacionais: o primeiro deles, que vem se arrastando desde o fim das negociações em 2019, é o processo para e ratificação do Acordo Mercosul-União Europeia. O segundo movimento, mais imediato e estopim inequívoco para esse debate, foi o anúncio de Trump sobre a adoção de tarifas teoricamente recíprocas a países e blocos que fazem comércio com os EUA.
O fato é que, pela primeira vez, há anos, abre-se um canal de diálogo construtivo em torno de interesses nacionais, aproximando os diversos espectros ideológicos. Do governo à oposição, senadores e deputados acordaram a prioridade da questão ao perceberem os impactos transversais do tarifaço não só em seus mais diversos interesses políticos e econômicos, mas também “nas escolhas legítimas e soberanas do Brasil”.
De fato, a mobilização nacional em torno do tema deve ser motivo de comemoração. Afinal, a polarização tem tido um efeito nefasto na discussão de temas que envolvem o interesse nacional, dividindo a sociedade em polos que se tornam incompatíveis. Em vez da busca pelo consenso – ou pelo menos a istração do dissenso - o que se vê é o completo rechaço do “outro”, impulsionado por sentimentos de ódio. Tal comportamento é prejudicial à governabilidade e é certamente uma ameaça existencial à própria democracia.
No caso do Brasil, a polarização tem tido impactos ainda mais nefastos sobre o interesse nacional na medida em que nossa sociedade tem dificuldades estruturais de implementar políticas de longo prazo.
Carecemos de cultura estratégica. Recentemente publicamos um artigo no Estadão (Debate político e bate-bocas apaixonados no Brasil, 19/10/2024) sobre a debilidade do debate político e a ausência de uma grande estratégia em nosso país. Na ocasião, sugerimos que a polarização e a proliferação de desinformação nas redes sociais tendem a minar a confiança da população na própria política, contribuindo para um ambiente de apatia e desconfiança generalizada, agravando, ainda mais, a sensação de desconexão entre a ação política e o interesse público.
Os momentos de crise podem constituir oportunidades de transformação. Os desafios impostos pelo tarifaço forçarão as nações a repensarem suas estratégias. O cenário geopolítico que se desenha sugere um freio no modelo de globalização e a reafirmação dos Estados nacionais. Nesse sentido, a adoção de um pacto nacional com bases em interesses estratégicos torna-se fundamental. Para que se sustente, nossa postura estratégica não pode se colocar somente como resposta ao medo de uma ameaça externa. Deve-se basear no que temos de capacidades históricas construídas: população diversa e tolerante, um potencial econômico invejável (especialmente em áreas estratégicas, como energética, ambiental e alimentar), uma diplomacia respeitada, e uma democracia que dá sinais de fortaleza. No caso do Brasil, é preciso mobilizar a sociedade, o Parlamento e o governo para discutir temas de interesse nacional, como é o caso das barreiras americanas - e europeias - ao comércio internacional brasileiro. Temos que escapar das armadilhas que nos aprisionam à lógica populista, adotando um debate coerente à estatura das potencialidades e vulnerabilidades de nosso país.
A resposta brasileira ao tarifaço parece ter muito a nos ensinar em relação ao nosso projeto de nação. Precisamos escapar das armadilhas da polarização e criar espaços de diálogo para a identificação de nossos interesses comuns. Essa deve ser a lógica orientadora na condução dos assuntos que nos são estratégicos: a de que devemos mobilizar uma nação por aquilo que nos une e não por aquilo que, supostamente, nos afasta.