Notícias adversas sobre o combate à corrupção têm ocupado o noticiário recentemente, trazendo uma dose de pessimismo aos comprometidos com a ética pública e refletindo-se no ambiente empresarial, especialmente em setores expostos a riscos regulatórios. No entanto, esse clima de desalento exige uma análise mais detida: nem tudo que parece retrocesso é, de fato, um abandono da causa.
No Brasil, a sensação de refluxo nessa agenda não é nova. Já estamos acostumados com o noticiário sobre o fim da Operação Lava-Jato há alguns anos, que marcou o encerramento de um ciclo de investigações intensas e de forte mobilização da opinião pública. Desde então, muitas vozes aram a defender que o combate à corrupção havia saído da pauta política e que o tema se tornara, em certa medida, um tabu. Agora, um novo fato reforçou essa percepção: a surpreendente notícia, vinda dos Estados Unidos, de que ações relacionadas ao combate à corrupção internacional seriam “pausadas” por seis meses.
A medida, anunciada no início de 2025, gerou uma série de pedidos de adiamento por parte de investigados por corrupção perante o Judiciário norte-americano. A reação foi imediata porque os Estados Unidos são, historicamente, o país mais ativo no enfrentamento da corrupção internacional, especialmente por meio da aplicação extraterritorial do Foreign Corrupt Practices Act (FA), legislação de referência no tema. Para muitos, esse seria um sinal inequívoco de recuo. Para outros, trata-se de uma reorganização estratégica, e não de um abandono.
Ao se observar com mais atenção o conteúdo da decisão norte-americana, nota-se que a pausa nas investigações em curso está associada a uma reorientação da política de enforcement do FA. Foi anunciado que o foco aria a ser o combate à corrupção ligada ao tráfico de drogas e ao crime organizado transnacional. A leitura de alguns analistas é de que essa mudança poderá, na prática, reduzir o número de casos investigados, já que nem toda forma de corrupção internacional está diretamente conectada ao narcotráfico.
Por outro lado, do ponto de vista da defesa do Estado Democrático de Direito, a nova ênfase faz sentido. O envolvimento do crime organizado mina gravemente a fé pública na democracia e em suas instituições. A corrupção associada ao narcotráfico não apenas distorce a atuação do Estado, mas também ameaça a segurança pública, amplia o poder de milícias e facções e compromete o funcionamento da Justiça em países especialmente vulneráveis. É uma corrupção mais violenta, menos visível, mas de efeitos profundos — e, por isso, legítima como prioridade.
Além disso, outros movimentos recentes indicam que o cenário internacional não é de retração, mas de reconfiguração. No dia 20 de março de 2025, os órgãos anticorrupção do Reino Unido (Serious Fraud Office – SFO), da França (Parquet National Financier – PNF) e da Suíça (Office of the Attorney General – OAG) anunciaram uma aliança internacional para reiterar seu compromisso no combate à corrupção transnacional. Essa iniciativa, embora tenha ado discretamente pelo noticiário, é altamente relevante.
Esses três países possuem legislações similares à norte-americana e, nos últimos cinco anos, vêm aumentando gradualmente a quantidade e a complexidade das investigações. O anúncio de uma colaboração estruturada entre eles representa um novo arranjo de governança global contra a corrupção, que poderá ganhar maior protagonismo justamente no momento em que os Estados Unidos reavaliam sua estratégia.
Além disso, os compromissos multilaterais seguem em vigor. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), ratificada por 191 países, continua sendo um marco regulatório importante. Seus mecanismos de avaliação mútua, revisões periódicas e incentivos à cooperação técnica são ferramentas relevantes que mantêm viva a agenda anticorrupção mesmo quando a vontade política parece arrefecer em alguns países.
Tanto isso é verdade que iniciativas mais ambiciosas, como a criação de uma Corte Internacional Anticorrupção, continuam em discussão em fóruns diplomáticos e acadêmicos. Embora ainda sem consenso, o simples fato de esse projeto permanecer vivo demonstra que há um interesse estrutural na construção de instrumentos jurídicos supranacionais para enfrentar crimes de corrupção de grande escala, especialmente quando envolvem elites políticas e empresariais com amplo poder de influência.
Por fim, o setor privado, particularmente as empresas com atuação global, tem mantido seus programas de integridade e conformidade. A pressão de investidores, consumidores e stakeholders internacionais por práticas mais éticas e transparentes tem funcionado como um contrapeso ao eventual relaxamento do enforcement estatal. Fundos de investimento, agências de risco e instituições financeiras aram a incorporar critérios ambientais, sociais e de governança (ESG) em suas análises de risco — e o “G” de governance vem ganhando peso próprio.
Nesse contexto, o compliance não é mais apenas um diferencial competitivo: é uma exigência para quem pretende operar em mercados regulados, participar de cadeias globais de valor e atrair capital de longo prazo. Essa tendência estrutural, liderada pelo setor privado e por organismos multilaterais, tende a manter viva a chama da integridade, independentemente dos vaivéns da política doméstica de cada país.
Em resumo, o cenário global de combate à corrupção não pode ser analisado apenas com base em movimentos pontuais, por mais simbólicos que sejam. É preciso considerar a arquitetura institucional mais ampla e os múltiplos vetores que influenciam essa agenda — estatais, privados e internacionais.
Os próximos meses serão cruciais para observar como se dará a reconfiguração do enforcement internacional, mas há elementos suficientes para afirmar que o compromisso com a ética pública segue vivo e relevante. Trata-se, mais do que nunca, de compreender que os caminhos da integridade podem mudar, mas sua importância permanece.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica