Francisco era mais que o líder religioso mais conhecido da Terra – era também o chefe de Estado do Vaticano. Por isso, entender como funciona a estrutura política do Vaticano é um exercício indispensável para capturar o que acontecerá a partir dessa notícia.
O Vaticano é onde está a sede da Igreja Católica Apostólica Romana, a instituição religiosa mais popular do mundo, com 1,3 bilhão de seguidores. Quem istra o Vaticano é uma jurisdição chamada Santa Sé. A Santa Sé é a entidade jurídico-religiosa que governa todos os católicos da Terra. É a Santa Sé que mantém relações diplomáticas com os outros países. O Vaticano é o território soberano, ao norte de Roma, que protege a independência da Santa Sé.
Quem governa a Santa Sé é um corpo istrativo chamado Cúria Romana: o gabinete papal responsável por fazer a máquina institucional da Santa Sé funcionar – da doutrina à diplomacia, da liturgia à comunicação.
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Embora os papas sejam, em teoria, monarcas absolutistas, eles também respeitam um sistema de freios e contrapesos onde, antes de tomar grandes decisões, levam em consideração os conselhos de um grupo muito específico de religiosos conhecidos como cardeais. São os cardeais que empossam o Papa através de uma eleição indireta.
A escolha de um cardeal é prerrogativa exclusiva do Papa. Tecnicamente, ele pode nomear qualquer homem batizado para ocupar essa posição. Mas, na prática, a imensa maioria dos cardeais são arcebispos.
A origem de cardeal vem de “cardo” – “dobradiça” em latim (assim como uma porta gira no eixo, a Igreja “gira” sobre os seus cardeais). Os cardeais ocupam os cargos mais altos da Cúria Romana. O mais importante deles é o Secretário de Estado. Se o Papa é o monarca do Vaticano, o Secretário de Estado é o primeiro-ministro da Santa Sé.

Das quase 5 mil pessoas que trabalham no Vaticano, os cardeais recebem os maiores salários. O cheque varia de quatro a cinco mil euros por mês, com direito a acomodação gratuita ou subsidiada. Alguns cardeais fazem voto de pobreza.
Quando um Papa morre ou renuncia, o Vaticano entra em Sede Vacante (sede vazia). O cardeal camerlengo (camerlengo é um título dado ao do Tesouro e dos bens da Santa Sé) verifica oficialmente a morte do pontífice (com um ritual solene, que inclui chamar o nome do Papa três vezes), sela os aposentos papais e a a istrar temporariamente os assuntos ordinários da Igreja. Quem ocupa esse papel nesse momento é o cardeal irlandês-americano Kevin Farrell. No intervalo entre a morte de Francisco e da posse do novo Papa, Farrel será o homem mais importante do Vaticano.
Nesse momento, algumas funções da Cúria Romana são suspensas e a autoridade central recai sobre o Colégio dos Cardeais. Até o início do Conclave, os cardeais realizam reuniões formais – conhecidas como Congregações Gerais – na Sala do Sínodo, para preparar o terreno para a eleição. Nessas reuniões, cada cardeal pode fazer uma intervenção oral (chamada “intervento”) sobre os desafios da Igreja, e, sem citar nomes, desenhar o “perfil ideal” para o novo pontífice.
De acordo com o Direito Canônico, não há obrigação para que o novo Papa seja cardeal, bispo ou mesmo padre – basta ser homem, católico e batizado. Mas no caso da eleição, altamente remota, de um leigo, ele precisaria receber imediatamente a ordenação sacerdotal e episcopal. O Papa, afinal, é sempre bispo de Roma.
A Igreja Católica já foi liderada por leigos – como o Papa João XIX, eleito em 1020 – mas desde 1378, todos os papas têm sido cardeais.

Apenas os cardeais com menos de 80 anos participam do Conclave. Hoje isso corresponde a 135 eleitores de um total de 252 cardeais. Desses eleitores, 109 foram nomeados por Francisco (80%), 22 por Bento XVI e cinco por João Paulo II.
Todos os cardeais aptos a votar devem estar em Roma dentro de 15 dias após o anúncio da morte do Papa. Quando o Conclave é aberto, eles se enclausuram na Capela Sistina, sob juramento de sigilo absoluto, sem comunicação com o mundo externo.
Não há candidaturas formais, nem campanhas públicas para o novo Papa. E embora não existam partidos políticos na Santa Sé, é amplamente reconhecido que os cardeais se agrupam em correntes ideológicas baseadas nas suas visões teológicas.
Há dois grandes grupos antagônicos no Colégio de Cardeais: de um lado, os conservadores/tradicionalistas, que enfatizam a doutrina imutável, a liturgia tradicional e uma moral sexual rígida; e de outro, os progressistas/reformistas, que apoiam as reformas iniciadas no Concílio Vaticano II, ampliadas pelo próprio Papa Francisco, com foco na misericórdia pastoral e na justiça social.
Quando Bento XVI renunciou ao papado, em 2013, 52% dos cardeais eram europeus. Mas esse número caiu para 40% desde que Francisco criou cardeais em países antes nunca contemplados – o Vaticano recebeu 163 novos cardeais entre 2014 e 2024, oriundos de 76 nações, dos quais mais de 20 cardeais de países que nunca tiveram um cardeal, quase todos de países em desenvolvimento, como Ruanda, Cabo Verde, Mongólia e Sudão do Sul. Em contrapartida, dioceses americanas importantes – como Los Angeles e San Francisco – não receberam cardeais durante boa parte do pontificado de Francisco, aparentemente porque os seus arcebispos tinham perfil conservador.
A ala mais conservadora do Colégio de Cardeais abriga dois nomes emblemáticos: o Cardeal Raymond Burke, dos Estados Unidos, e o Cardeal Robert Sarah, de Guiné. Burke é conhecido pelo apreço às vestes e cerimônias tridentinas, e dirigiu críticas públicas contundentes às posições mais reformistas de Francisco. Ele é o favorito de Donald Trump.
A ala mais reformista tem entre os seus nomes mais proeminentes o Cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas, e o Cardeal Matteo Zuppi, da Itália. Tagle é apelidado de “o Francisco asiático”, e visto como o mais reformista entre os cardeais.
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Entre conservadores e reformistas há um grande número de cardeais independentes, que transitam entre posições intermediárias. Muitos deles são diplomatas ou gestores com longa experiência na Cúria Romana – é o caso de Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano desde 2013, o primeiro-ministro da Santa Sé.
É verdade que as nomeações de Francisco, na última década, fortaleceram o grupo mais reformista da Igreja – e por isso, a dinâmica de poder do Colégio de Cardeais tende a favorecer uma continuidade moderada ou reformista em relação ao pontificado de Francisco. Mas é importante entender que nem todos os cardeais não-europeus são automaticamente “progressistas” no sentido ocidental: há cardeais africanos e asiáticos que, embora engajados em justiça social, como Francisco, mantêm posições conservadoras em temas morais, como a questão LGBT.
No Conclave, cada cardeal preencherá cédulas secretas escrevendo o nome do seu escolhido. Até quatro votações serão realizadas por dia (duas pela manhã e duas à tarde) até que algum nome atinja a maioria qualificada de 2/3 dos votos.
Quando nenhum candidato atingir a maioria necessária, as cédulas serão queimadas com aditivos químicos que produzem fumaça preta. Quando os cardeais elegerem um novo Papa, as células serão queimadas para produzir uma fumaça branca.

No instante em que o escolhido ultraar os 2/3 dos votos, ele será questionado se aceita a eleição e qual nome papal adotará. Aceitando, ele se tornará imediatamente o novo Bispo de Roma e Papa da Igreja Católica. O decano do Colégio de Cardeais (o mais velho entre os cardeais da ordem dos diáconos) então anunciará “Habemus Papam” (“Temos um Papa”) ao público, reunido na Praça de São Pedro, e o novo Papa realizará a sua primeira aparição na varanda da Basílica de São Pedro.
Como o resultado do Conclave não é predeterminado, e os conclaves carregam sempre um certo grau de imprevisibilidade, ninguém é capaz de prever quem assumirá essa posição nos próximos dias. É verdade que há uma longa lista de favoritos, divulgados pela imprensa e por vaticanistas. Mas os italianos têm um bom ditado a respeito deles: “Chi entra Papa nel conclave, ne esce cardinale” (“quem entra no conclave como Papa sai de lá cardeal”).
Agora é a vez da fé definir o novo líder da Igreja mais popular da Terra – mas com uma boa pitada de política.